Como toda a gente, fiquei surpreendidíssimo com a vitória de Carlos Moedas e da coligação PSD/CDS em Lisboa e com a derrota de Medina e da coligação PS/PRR. E, como muita boa gente, fiquei contentíssimo. E contentíssimo também fiquei quando soube quais as boas cabeças que aconselharam Moedas, que também tem uma boa cabeça, na sua campanha. A coisa torna-se assim um bocadinho mais explicável.
Infelizmente, esta óptima surpresa não chega para convencer uma pessoa das maravilhas fatais do Portugal da nossa idade. Da nossa idade e de várias outras idades passadas. Pelo contrário. Mais se olha para as coisas de trás com olhos de ver e mais assustado e deprimido se fica. Algumas vezes por razões óbvias, outras por obscuros sinais nos quais um espírito dedicado à interpretação não pode senão detectar o anúncio de uma verdade simples e ameaçadora: Portugal faz mal.
Tomemos o exemplo, razoavelmente excêntrico, da ópera. Que eu saiba – mas pode ser ignorância minha -, há apenas duas óperas de compositores célebres que tomam Portugal por objecto: o Dom Sébastien, Roi de Portugal de Donizetti (estreada em 1843) e a L’Africaine de Meyerbeer (estreada em 1865), que tem como personagem principal Vasco da Gama. Nunca ouvi, confesso, a primeira (a bíblia destas coisas, o New Grove, refere a opinião corrente à época segundo a qual se trataria de “um funeral em cinco actos”, e li noutro lugar que Camões ali morre tentando salvar D. Sebastião e a sua amada, a princesa africana Zaida, perseguidos pela Inquisição). Mas ouvi a segunda, da qual tenho, de resto, um DVD, no qual Plácido Domingo (a quem na altura ainda deixavam cantar) interpreta o nosso grande Vasco.
Além de Portugal, estas duas óperas têm algo em comum: foram as últimas óperas dos dois ilustres compositores. E aí é que os tais sinais ameaçadores se manifestam. Durante os ensaios de Dom Sébastien, Donizetti começou a agir estranhamente, dizendo coisas incompreensíveis e comportando-se de modo errático, a tal ponto que, pouco depois, tendo caído numa loucura que nunca o viria mais a abandonar, um sobrinho teve de o ir buscar e internar num sanatório. Meyerbeer não teve melhor sorte: no dia seguinte a acabar a composição de L’Africaine, morreu subitamente. Uma mente detectivesca poria a culpa destas duas desventuras no mordomo, isto é, no libretista de ambas as óperas, Eugène Scribe (na segunda, inspirando-se muito vagamente nos Lusíadas). Mas Scribe é, com Metastasio, um dos mais prolíficos libretistas de todos os tempos, e vários compositores resistiram saudavelmente à sua colaboração. Verdi, por exemplo, sobreviveu-lhe por fartos anos. Descontando a sífilis de que sofria Donizetti, resta apenas uma hipótese verosímil para explicar esta comum desgraça: Portugal. Portugal, como disse, faz mal.
Pessoalmente, é com alguma apreensão que penso nisto. Não que esteja a compor alguma ópera sobre a pátria, é claro. Mas, por razões académicas, estou obrigado, durante este semestre lectivo, a estudar o movimento de ideias da chamada “geração de 70”, sobretudo as ideias de Eça, Oliveira Martins e Antero de Quental, coisa que tenho feito disciplinadamente e com interesse, ordenando o que já antes tinha pensado e tentando pensar, com a ajuda de pilhas de livros, algumas coisas novas. Em consequência, a prudente distância que até agora tinha mantido face às coisas portuguesas, com infidelidades pelo meio, transformou-se numa proximidade comprometedora e quase íntima. Olhar de perto é diferente de olhar de longe e é declaradamente mais perigoso.
Particularmente, ando às voltas com a admiração daquela geração pela Comuna de Paris (1871) e com a sua patriótica revolta contra o ultimatum inglês (1890), quer dizer, sensivelmente com o período que vai das Conferências do Casino às reuniões do grupo dos Vencidos da Vida. Não vou aqui falar das posições (às vezes complexas e contraditórias) dos vários autores sobre os dois acontecimentos. Em contrapartida, quero notar uma coisa óbvia. No espaço da minha vida, testemunhei inúmeras vezes atitudes colectivas muito semelhantes às daquela geração. Quer se trate da admiração entusiástica por revoluções sortidas por esse mundo fora; quer se trate de manifestações destemperadas e recorrentes de anglofobia, a propósito dos mais variados acontecimentos, que nada ficam a dever à imagem dos lordes cortados às postas a boiarem no Tamisa de Guerra Junqueiro.
Isto só pode querer dizer algo de significativo sobre nós. E, tristemente, nada de bom. Sem entrar em explicações muito sofisticadas, diz algo sobre a nossa condição imitativa e sobre o nosso complexo de inferioridade (é, creio, a expressão justa). A nossa condição imitativa é a dos espectadores que ambicionam macaquear nos mínimos detalhes o que vêem no palco, confundindo sistematicamente a tragédia com a comédia e a comédia com a tragédia. O resultado é, como não podia deixar de ser, grotesco. E o nosso complexo de inferioridade manifesta-se usualmente através do uso e abuso da bravata indignada. Não há fanfarronice que falhe quando exprimimos a nossa superioridade moral sobre a pérfida Albion. Só gente que se acha, no íntimo inconfessável, inferior, pode agir desta maneira, imaginando castigos justiceiros e vinganças exemplares.
Se uma pessoa começar a pensar a sério nisto, é difícil evitar cair numa espécie de abismo de melancolia. Porque estas duas atitudes – que, volto a dizer, se repetem com uma regularidade impressionante, seja quais forem os objectos e casos particulares – contaminam o todo da sociedade, mergulhando-a numa atmosfera de irrealidade militante. Como é fácil de observar, essa irrealidade impede, à partida, que se pense politicamente de modo eficaz e que se tomem as decisões necessárias para melhorar a nossa situação. E mais do que isso. A criação da atmosfera de irrealidade – que o Governo de António Costa, de resto, à sua maneira elevou à condição de suprema arte política – só pode contribuir para que a nossa situação piore e continue a piorar, sem termo à vista. Viver isto de perto – viver no meio disto – não afaga propriamente a alma com doces carícias. Em pessoas sensíveis, fere-a.
Pelo que acabei de dizer, se me virem, à semelhança dos dois homens ilustres acima referidos, desaparecer de um dia para o outro, sem aviso, desta coluna do Observador e do universo em geral, ou se me apanharem a elogiar encomiasticamente António Costa, apelidando-o de “o nosso maior estadista desde D. Afonso Henriques” e de “preclaro espírito que alumia o nosso destino e nos incute a força que nos conduzirá ao topo do saber europeu”, já sabem de quem é a culpa. E não, não é de Scribe nem da sífilis. Sim, é do que estão muito bem a pensar: desta ditosa pátria muito nossa amada.
Entretanto, Vasco da Gama, que passa (também ele!) pelos calabouços da Inquisição, é amado por duas mulheres: Inês, a sua noiva, e Selika, uma rainha indiana (os portugueses, para Scribe, são felizmente dados ao multiculturalismo amoroso; em L’Africaine, é verdade, só no Acto IV e com a ajuda do velho truque do “filtro de amor”) que havia trazido a Lisboa como escrava na sua última viagem. Selika, por sua vez, é amada por Nelusko, outro escravo que Vasco da Gama trouxera consigo. No final, e já na Índia, Selika sacrifica-se pela felicidade de Vasco e Inês, suicidando-se. Nelusko, de coração partido, ao vê-la morta, suicida-se também, enquanto um navio, já só um pequeno ponto no horizonte (imagina-se), transporta Plácido Domingo e Ruth Ann Swenson de volta a Lisboa, para longe dos cadáveres de Shirley Verrett e de Justino Díaz. Isto sim, isto eleva a alma – e torna, pelo menos por momentos, inverosímeis as duas hipóteses avançadas no parágrafo anterior.
P.S.: Alexandre Franco de Sá acaba de publicar um importante livro sobre o populismo, cuja leitura evitaria a muita gente dizer os costumeiros disparates sobre o assunto: Ideias sem centro. Esquerda e direita no populismo contemporâneo (D. Quixote). Tenciono escrever sobre ele nas próximas semanas.