No lar de Reguengos o pessoal da cozinha e do refeitório mudava pensos, algálias e sondas de alimentação. Alguns utentes morreram por falta de medicamentos. Outros por falta de água ou de cuidados. Perante este quadro a ministra Ana Mendes Godinho que tem a tutela dos lares e cujo ministério publica centenas de páginas com decretos, normas e recomendações sobre o funcionamento dos lares declara: “O meu objectivo não é apurar a responsabilidade de surtos nos lares”. Ana Mendes Godinho também informa que não leu o relatório da Ordem dos Médicos sobre o que aconteceu em Reguengos. E, acrescente-se, que estas declarações a ministra assume e não considera terem sido descontextualizadas. Portanto passemos à questão do objectivo que a ministra diz não ter: apurar responsabilidades de surtos nos lares. Mas existem responsabilidades? Afinal os governos estão aí para nos mudar as mentalidades não para governar. O primeiro passo foi exactamente libertarem-se dessa coisa atávica que são as responsabilidades. Houve por acaso responsabilidade em Pedrogão? Na estrada que ruiu em Borba? Aliás, como a dra Graça Freitas afirmou a propósito do acontecido no lar de Reguengos “Quem sabe gerir este surto é quem cá está, são as forças locais que se organizaram para dar uma resposta. Com os dados que havia foram bem utilizados os recursos.”
Portanto, “quem sabe gerir” organizou-se “para dar um resposta” e “foram bem utilizados os recursos”. Mais a mais localmente. Percebeu-se que algumas mortes podiam ter sido evitadas? Não. Que não se faziam registos clínicos dos idosos, nem das doenças de que padeciam, nem dos medicamentos que tomavam? Nada de nada. Em resumo para a DGS corre tudo bem. E a ministra do do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social não tem como objectivo apurar as responsabilidades do que correu e corre mal nos lares. O meu bem haja a ambas!
Mas pode a senhora ministra estar descansada porque a culpa verdadeiramente falando é dos velhos. Esses velhos que teimam em sobreviver numa sociedade cujos adultos dormem com cães e gatos e mexem mais facilmente em excrementos de cão do que mudam uma fralda a um ser humano. Esses velhos que insistem em ter vida para lá dos dias festivos em que são objecto de fotografias fofinhas. Esses velhos que têm o azar de se manter vivos num tempo em que não se concebe a necessidade de afectar tempo a tratar deles.
Os velhos exigem tempo e responsabilização a sociedades cujos adultos adolescentizaram e que por isso ao mesmo tempo que se mobilizam emotivamente em torno do sofrimento causado a desconhecidos — George Floyd, por exemplo — são incapazes de assumir um encargo real e continuado com um pai ou com uma avó.
Temos de ser capazes de enfrentar o óbvio: é preciso que as famílias se tenham demitido muitíssimo para os lares conseguirem funcionar tão mal por tanto tempo, em países tão diferentes e sem que isso cause um estado de indignação geral. Ou sequer uma reflexão. Por exemplo, na mesma Bélgica que anda agora entretida a derrubar estátuas do colonialista rei Leopoldo, registam-se os valores mais altos do mundo de mortos por Covid por cada milhão de habitantes, sem que na Bélgica ou fora dela se ouça uma pergunta sobre a estranheza desse facto. Na Bélgica morreram até agora 9924 pessoas por Covid. Cinco mil destas pessoas viviam em lares. Por outras palavras metade dos mortos por Covid na Bélgica eram velhos institucionalizados. Em França esta percentagem será de um terço. Que discussão temos tido sobre estes números? Por exemplo, sobre a dimensão dos lares ou a falta de uma hierarquia capaz de tomar decisões? Recordo que a Bélgica à conta das regiões e das estruturas federais tem o equivalente a seis ministros da Saúde! Mas haverá sempre um rei Leopoldo para desviar as atenções!
Em Espanha terão sido 16 mil os residentes em lares que não resistiram ao Covid ou mais exactamente ao mau funcionamento dos lares que o Covid veio acentuar. Alguém sabe o nome sequer do lar de Madrid onde se estima terem morrido 100 pacientes em circunstâncias agónicas? Como é que isto foi possível em países em que se regula tudo? Porque o lugar dos velhos é um não lugar. O Covid veio mostrar o que nos temos esforçado para não ver: o abandono dos velhos. Tudo o que para os demais é crime no caso dos velhos é destino. E por isso a ministra Ana Mendes Godinho pode dizer “O meu objectivo não é apurar a responsabilidade de surtos nos lares”.
PS1. A campanha presidencial está num ritmo frenético. Marcelo está omnipresente nos noticiários, salva banhistas que já tinham o nadador salvador por perto e partiu à conquista do eleitorado de direita.
PS2. “Mais um episódio dramático nos EUA: Jovem de 25 anos preso por ter morto uma criança com um tiro na cabeça” — escreve a revista Visão. Nesta notícia existem vários episódios dramáticos. O primeiro deles é obviamente a morte da criança. O segundo é a loucura que varre as redacções: até há algum tempo este titulo seria “Criança de cinco anos morta com um tiro na cabeça por jovem de 25 anos.” Mas estamos em 2020. O atirador é negro, a criança branca e quem escreve quer ficar bem na fotografia do jornalismo-activista. Portanto o episódio dramático em destaque é a prisão do homicida. Escusamos de pensar que no dia em que esta loucura passar vamos reflectir sobre o assunto. Não teremos tempo porque outra causa, igualmente maniqueísta, igualmente urgente andará alucinada pelos títulos.