Na última crónica, apresentei uma visão crítica sobre a Geringonça e os prejuízos por esta causados no equilíbrio do nosso sistema político, em especial, na construção de maiorias políticas responsáveis e consistentes. No período eleitoral que se avizinha, os partidos devem apresentar aquilo que os diferencia e o que consideram ser essencial no seu programa político para viabilizar soluções governativas. Já o Presidente da República deve deixar claro à partida que, no próximo ciclo político, vai valorizar os arranjos políticos que favoreçam a estabilidade, mas também a responsabilidade, não dando espaço a que haja forças políticas a suportar de uma forma maniqueísta um partido de governo, mantendo-se, porém, apenas no Parlamento, sem assumir o ónus – e o desgaste – da governação.
Nos últimos anos, mas de uma forma acentuada desde 2015, que o nosso sistema partidário tem experimentado uma profunda fragmentação e obsessão identitária. Tal deve-se, em parte, aos incentivos criados pela experiência da Geringonça; em parte, também, pela excessiva utilização das redes sociais como plataformas privilegiadas (e quase únicas) para a discussão política. O sistema partidário tradicional, virado sobre si próprio, acentuou ainda mais a crise de representação que, progressivamente, assolou os partidos nascidos da Revolução, numa lenta agonia que irá conduzir à morte progressiva dos que não sejam capazes de se adaptar à sociedade de hoje e aos seus desafios. A forma como os partidos são incapazes de lidar com um mundo onde impera a comunicação digital, exibindo com total despudor as suas lutas fratricidas, de faca e alguidar, onde as dissonâncias de hoje se fazem na destruição absoluta e irremediável das lealdades assinaladas no dia anterior, justificando-se aos cidadãos como se estes compreendessem e acompanhassem as incidências e os detalhes das suas guerras internas, destrói irremediavelmente a legitimidade e o prestígio dos políticos. E se o espetáculo à direita estava a ser mau, nas últimas semanas, com o eclipse da Geringonça, a própria esquerda entrou num jogo de recriminação recíproca que veio acrescentar descrença e desconfiança, também, junto do seu eleitorado menos arregimentado.
A forma caricatural como os partidos em Portugal (mas não apenas), se perdem em disputas identitárias esgrimindo ideologias moribundas e até mortas é, além do mais, uma profunda perda de tempo. Num período em que o mundo tem vindo a submeter-se às disrupções causadas pela quarta revolução industrial, gerando fórmulas de conhecimento e valor que estão drasticamente a mudar as regras e a vivência em sociedade, mais do que partidos de direita ou de esquerda, aninhados na reciclagem preguiçosa das grandes bandeiras caducas dos anos 60 e 70, procurando no passado uma ilusão de modernidade, urge encontrar respostas para os desafios dos tempos, e acelerar a celebração de um novo contrato social.
Daí que não seja difícil antecipar que, no futuro político (não muito auspicioso) de Portugal, não haverá espaço para partidos como o CDS, o Livre, ou o PCP, os quais, por razões distintas, irão ter uma morte rápida, no caso dos dois primeiros, e em lenta agonia, no caso dos comunistas.
O CDS nos dois últimos anos desistiu de tentar exercer qualquer função de representação, tendo desbaratado todo o seu capital e relevância sociais. Mesmo os que continuam, como eu, a sentir empatia pelo partido e proximidade com aquilo que ele já representou, só mesmo por delírio irão votar num grupo de políticos sem trajeto de vida, sem densidade intelectual, técnica, relevância social ou capacidade de mobilização, algo fatal para uma força política que se apresentou historicamente como “partido de quadros”. Se é verdade que Assunção Cristas falhou na sua tentativa de afirmar um projeto que procurava representar uma direita cosmopolita e plural, secundada por uma equipa qualificada, pelo menos a sua derrota foi digna, porque era válida a sua ambição. Já o fim de Francisco Rodrigues dos Santos, e dos poucos que ainda o acompanham, vai ser trágico e sem glamour, perdido que está o partido nas suas lides de ajuste de contas e exposição pública do seu desinteresse, que provocam um sentimento de vergonha alheia e debandada aos que durante anos viram no CDS a sua casa política.
O Livre, enquanto nado-morto, teve na eleição de Joacine Katar Moreira um sopro de vida que por momentos nos fez esquecer o carácter unipessoal de um partido condenado à nascença pelo karma do seu principal rosto e fundador. Já o PCP, na impossibilidade de renovar uma proposta política que assenta numa ideologia morta, irá continuar a definhar, na medida em que o seu eleitorado, envelhecido e fiel, o vá abandonando, deixando os seus filhos nas mãos dos partidos que, à esquerda, se apresentam como mais próximos dos dias de hoje.
Chega, Iniciativa Liberal e PAN são as forças políticas que emergem com mais apoio social, mas não sem riscos. O Chega, enquanto partido de protesto, vive na dependência estrita do carisma de André Ventura, e de uma estratégia de comunicação que mistura projeções do Apocalipse com fake news. A Iniciativa Liberal ocupa hoje o espaço da direita cosmopolita que foi abandonado, em parte pelo CDS, em parte pelo PSD, tendo margem de crescimento junto de uma população jovem (ou que se sente jovem) que não se revê no Chega nem num pensamento conservador. O PAN, por seu lado, é o partido que, alinhado com as causas emergentes do animalismo e da defesa do ambiente, e afastado das querelas “esquerda-direita”, mais potencial apresenta para se posicionar como o fiel da balança de um sistema político fragmentado. Chega, IL e PAN – talvez ainda não em Janeiro, mas num futuro próximo – poderão sofrer com o apelo do voto útil, que é inerente ao nosso sistema partidário. Dos três, apenas o PAN está verdadeiramente ancorado naquilo que são os valores emergentes das gerações futuras. O Chega nasceu velho, e velho irá ficar, pois a sua raiz é saudosista e apela a um tempo ao qual não iremos regressar; tem, ainda assim, mercado eleitoral num país profundamente empobrecido e envelhecido. Já a IL vive autoconvencida da sua vanguarda, ao mesmo tempo que se limita a propor a um país exposto às disrupções de um mundo digital soluções requentadas de políticas liberais pensadas para uma economia ao estilo Bretton Woods e para o debate ideológico dos tempos da Guerra Fria, não apresentando até à data nada de verdadeiramente inovador.
O futuro – não muito auspicioso – de Portugal estará, no curto prazo (ainda), nas mãos de PS e PSD. Não nego que a autofagia que apontei ao CDS está também presente há vários anos, no PSD. Como assinalei aqui, há vários anos que no PSD as fações dominantes, sem qualquer renovação, alternam entre si na liderança, destruindo capital e relevância sociais, limitando o seu campo de afirmação e abrindo espaço para a emergência do Chega e da própria Iniciativa Liberal. Veremos se as bases optam por manter um Rui Rio cada vez mais acantonado, ou fazer uma rotação de 360.º, escolhendo o camaleónico Rangel, coleção 2021-2022, o qual se apresenta, por esta vez, numa versão prêt-à-porter, de tonalidades neutras e usáveis, suficientemente naïfs para convencer todos os que no partido já não conseguem olhar para Rui Rio. Rangel, o previsível vencedor, terá dois meses para demonstrar aos eleitores ser o líder providencial de que o país necessita, e não apenas o que estava disponível para afastar Rio. Desafio difícil, mas não impossível, se souber unir – como parece estar a acontecer – as distintas fações, incluindo os que nas fileiras do adversário acrescentam valor (sendo o caso mais óbvio o de Joaquim Sarmento e da sua equipa, mas não só). Já António Costa terá em Janeiro mais uma oportunidade de demonstrar que, enquanto líder paradoxal, é capaz de se reinventar em função das circunstâncias. Depois de ter sido o paladino da união das esquerdas, Costa tentará projetar-se agora como o repositório da estabilidade, procurando endereçar para o PCP e para o Bloco de Esquerda as responsabilidades do falhanço da Geringonça. O tempo dir-nos-á se, no espaço existente entre um PSD sujeito a um lifting suave e uma extrema-esquerda que se apresentará ruidosa, Costa sai derrotado ou emerge mais uma vez como garante da governabilidade. O futuro do Bloco de Esquerda depende, e muito, daquilo que for o resultado do PS.
À saída da crise mais complexa das últimas décadas, causada pela pandemia, a qual coincide com um período de profunda disrupção tecnológica e social – em que assistimos a uma profunda alteração dos hábitos, do trabalho, dos valores e das prioridades dos cidadãos –, não nos podemos dar (mais uma vez) ao luxo de desperdiçar as oportunidades disponíveis para fazer melhor. Mais do que nunca, precisamos de uma governação coerente que permita, a prazo, desonerar a fiscalidade, aumentar o investimento público, diminuir a despesa pública primária, e modernizar o país, a partir de políticas públicas coerentes. Sobre isso, trabalharei nas próximas crónicas, aqui apresentando de forma sucinta aquilo que considero ser essencial para o futuro do país.