Portugal precisa de uma reforma do Estado que tenha no centro das preocupações os cidadãos a quem é suposto servir, bem como os contribuintes que o pagam. Mas não vai ter nada disto durante os tempos mais próximos.

Os partidos que apoiam o Governo não querem ouvir falar do assunto. A oposição não dispõe de qualquer meio de forçar o PS a sentar-se à mesa para discutir o tema, nem que Rui Rio decida ir todos os dias a São Bento tomar chá e saborear um biscoito na companhia de António Costa.

A geringonça pode não ser a solução para colocar em prática as mudanças que são necessárias, entre as quais a de saber que Estado se pretende e se pode ter e que recursos existem para o sustentar sem comprometer a saúde da economia ou asfixiar quem paga os impostos que lhe são apresentados para cobrança. Mas os socialistas estão satisfeitos.

Para quê mexer em dossiês complicados se as circunstâncias actuais permitem ao PS manter-se no poder e ir superando, caso a caso, as episódicas alterações de humor do Bloco, do PCP e dos sindicatos que lhe asseguram obediência? Ainda por cima, tudo isto sucede numa conjuntura externa favorável em que os astros se conjugaram para dar um empurrão na taxa de crescimento, modesta na comparação com outros parceiros europeus, mas estrepitosa perante o desempenho medíocre de Portugal desde o arranque do século XXI.

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Em alternativa, o país é gerido através de uma política de sucedâneos, de acordo com o velho princípio popular de que quem não tem cão, ou não quer ter, caça com gato. Não faltam exemplos.

Em vez de cortes criteriosos na despesa pública, que exigiriam estudo, análise, transparência e coragem política, dão-se golpes indiscriminados através das cativações. Se a Agência Europeia do Medicamento não é instalada no Porto, deslocaliza-se o Infarmed, remédio santo para os amuos autárquicos. E se a Associação Mutualista Montepio Geral está em falência técnica e não tem meios de cobrir os capitais próprios negativos, retira-se-lhe a isenção de IRC e transforma-se a Autoridade Tributária em cúmplice de uma manobra contabilística destinada, em primeiro lugar, a iludir os associados e a convencê-los de que, afinal de contas, a agremiação está sólida e lustrosa como um diamante.

A reforma do Estado, que durante o Governo de Pedro Passos Coelho mereceu um documento pífio da responsabilidade de Paulo Portas, vai continuar a marinar. Mas haverá a descentralização, um sucedâneo da regionalização que muita gente nas altas esferas do PS mais desejaria. Se é o que há, então que se discuta, para que as medidas não se resumam a um acordo anódino entre o PS e o PSD, mais talhado para fingir que se muda do que para mudar.

A propósito dos vinte anos sobre o referendo à regionalização que enfiou o projecto na gaveta, Carlos Guimarães Pinto, num texto publicado no Observador, questiona se não será tempo de voltar a consultar os eleitores e faz uma análise fundamentada. Conclui que as promessas de descentralização ficaram em boa parte por cumprir e que “a qualidade de vida em todas as regiões divergiu em relação à média europeia, tanto nas regiões mais ricas como nas mais pobres”. Açores e Madeira são as excepções, num país que, de acordo com os dados que são utilizados pelo autor, padece de centralismo crónico.

A questão pode ser vista a partir de outros ângulos que não apenas aquele que analisa o estado de Portugal continental a partir das regiões abrangidas pelas cinco comissões de coordenação e de desenvolvimento regional. Sob diversos indicadores, a região de Lisboa e Vale do Tejo tem um retrato bem melhor em comparação com o restante território nacional. Mas há outro fosso, no mínimo igualmente grave, que não deve ficar de fora do debate. É aquele que separa o litoral, onde se concentra a maioria da população portuguesa, e o interior, onde as tragédias dos incêndios mostraram um cenário de abandono e de cidadãos sem voz nem peso para influenciar decisões que ajudem a cuidar das suas vidas e património.

Talvez uma parte dos problemas que os adeptos da regionalização querem resolver, mesmo que o processo surja travestido de descentralização, deva passar por uma reforma do sistema político e eleitoral. Actualmente, mais de metade dos deputados que se sentam nas bancadas da Assembleia da República foram eleitos por apenas quarto círculos, todos situados no litoral. Lisboa, Porto, Setúbal e Aveiro elegeram 52% dos membros do Parlamento. Caso se somem os círculos de Faro e de Viana do Castelo, aquela maioria torna-se ainda mais expressiva.

A situação resulta de uma realidade imposta pela distribuição territorial dos eleitores e reproduz a realidade portuguesa. Existem votantes em número mais elevado nos círculos eleitorais do litoral e, por este simples facto, a lei determina que têm o direito de eleger mais deputados. Mas, se a prioridade for mesmo a de corrigir desequilíbrios e dar mais poder a quem tem pouco, ou não o tem de todo, este é um tópico que devia ser colocado sobre a mesa.

Ainda assim, uma revisão da lei eleitoral feita com o propósito de tentar corrigir assimetrias, em que os círculos situados no interior poderiam eleger mais deputados, não daria garantias de ser suficiente para mudar alguma coisa, caso não fosse aberta a possibilidade de se escolherem representantes que integrariam uma câmara paritária, em que todas as regiões teriam o mesmo peso.

O sistema que está em vigor permite a existência de candidatos que, por serem originários de uma região e se sujeitarem a votos por um círculo diferente, são apelidados de “paraquedistas”. A situação, em si, não tem nada de especialmente criticável. Mas não deixa de ser fruto, em boa parte, de listas de candidatos elaboradas de acordo com interesses e equilíbrios partidários que têm pouco ou nada a ver com as expectativas dos eleitores sobre o desenvolvimento e a qualidade de vida nas regiões em que habitam.

O busílis está no facto de existir um compromisso com o partido que vale mais do que qualquer eventual pacto celebrado entre eleitores e eleitos, uma mera bizarria no sistema português. O caso mudaria de figura se o calculismo eleitoral dos partidos não fosse a areia na engrenagem que, de tempos a tempos, emperra qualquer proposta para a introdução de círculos uninominais que responsabilizariam os deputados eleitos e lhes exijiriam a prestação de contas perante quem neles tivesse decidido confiar.

É muito provável que nada disto venha a fazer parte do pacote de medidas que pretende promover a descentralização, a regionalização ou lá o que for. António Costa afirmou querer um processo dotado de “bom senso e consenso”, rima que prenuncia uma colheita de muita parra para pouca uva, uma simples discussão sobre quais as competências que vão ser despejadas sobre os ombros dos autarcas e quem vai pagar as contas. Rui Rio declarou querer ir mais longe do que o primeiro-ministro, com decisões revolucionárias como a mudança da sede do Tribunal Constitucional ou do Provedor de Justiça para Coimbra. Se for só isto, será poucochinho barulho por coisa nenhuma.