Cada família é uma nação. Uma nação com territórios definidos, numa geografia própria, cheia de fronteiras e relações de vizinhança. Um país com regras e uma cultura única, original. Uma pátria particular, com uma identidade pessoal e intransmissível. Em cada Estado existem povos e tribos que nem sempre colaboram entre si. Pais e filhos podem viver na mesma casa, mas crescem e evoluem por caminhos diferentes. Muitas vezes em sentidos opostos. Faz parte. Irmãos, filhos dos mesmos pais, entendem-se e desentendem-se facilmente. Meios irmãos, madrastas e padrastos, namoradas e namorados (de pais e filhos, note-se!), cunhados, sogras e sogros, por melhores e mais queridos que sejam, vêm de fora, de outras nações e diferentes origens e, por isso, criam novas espécies, castas e sub-castas que tornam tudo ainda mais complexo e sensível. No meio disto tudo ganha-se e perde-se muito. Ganha-se em abertura e familiaridade, eventualmente, até em número de pessoas à mesa ou em redes de apoio entre pares, mas perde-se facilmente na comunicação. Muitas famílias sabem isso e conseguem reforçar laços comunicando mais e melhor. Esforçam-se por manter o fio da conversa entre pais e filhos, seja em modo convencional ou nas chamadas famílias refeitas. Mas há as que perdem esse comboio da conversa em dia. Os pais deixam de saber quem são os filhos, o que pensam e sentem, como agem e porque reagem. O afastamento entre uns e outros pode cavar abismos intransponíveis. Pouco falam, já nem sequer discutem, e isso não ajuda.

Na infância e até à adolescência a esmagadora maioria dos pais, casados ou separados, consegue manter-se mais ou menos a par daquilo que vai dentro da cabeça e do coração dos seus filhos, sabe identificar os seus problemas e consegue ajudá-los a encontrar soluções, mas a partir de certas idades eles podem tornar-se verdadeiramente opacos. Ninguém tem culpas, digamos assim. Faz parte do processo de crescimento. Da chamada individualização que reforça a personalidade, a autonomia e a singularidade de cada um. Até aqui tudo bem, mesmo quando em casa parece tudo mal. O mais difícil é perceber em que estação poderemos voltar a encontrar cada um dos filhos que, de alguma forma, sentimos que estamos a perder por ganharem cada vez mais distância. Neste movimento acelerado, a uma velocidade por vezes quicksonic, sentimos que os perdemos, especialmente quando eles atravessam fases difíceis ou experimentam a dureza da vida. Nessas alturas é inevitável pensarmos que há básicos essenciais da sua vida que já não conseguimos alcançar. Coisas que nos escapam porque a realidade dos nossos filhos é radicalmente diferente da nossa e nos parece cada vez mais remota.

Voltando um pouco atrás, ainda aos tempos de casa, por assim dizer, os chamados late teens, que se preparam para entrar na universidade ou apostam em cursos técnico-profissionais para chegarem ao mercado de trabalho, começam a sofrer pressões brutais. As notas, as médias, as opções académicas, a escolha dos cursos, as expectativas dos outros, os sonhos próprios, as ameaças do desemprego nas suas áreas de especialidade, a competição feroz, a vida que está difícil para todos e por aí adiante, geram neles um stress descomunal. E muitas vezes fecha-os. Para agravar, a pressão dos pais – nós! – também aumenta. E isso naturalmente torna-se pesado. Pesadíssimo. Corta muitas vezes o fio da conversa. Ou distorce-o, porque se centra apenas nas notas. E um filho não é nem pode ser apenas a sua nota! O stress a que muitos universitários (pré e pós!) ficam sujeitos é demolidor. Acresce a tudo isto, que já não é pouco, a deslocação para outras geografias e a gestão da sua própria vida em cidades ou países estranhos. Por vezes a saída da casa de família para ir morar longe acontece cedo demais. Parece divertido ir viver fora, partilhar um quarto ou viver em comunidade (e é muito divertido quando corre bem!), mas exige um cúmulo violento de adaptações. Se pensarmos que hoje em dia muitos jovens já tiveram que se adaptar a separações e divórcios, a infinitas deslocações de mala às costas fim de semana sim, fim de semana não – tantas vezes entre cidades diferentes ou mesmo entre países distantes! – já tiveram que acomodar no seu coração sucessivas namoradas e namorados de pai e mãe, adaptar-se a realidades de outras ‘nações’ quando passam a dividir o seu próprio quarto com meios-irmãos biológicos muito mais novos, ou filhos das madrastras e padrastos muito diferentes, já ajustaram precocemente a sua vida a situações e relações que lhes eram estranhas, já deixaram de viver a tempo inteiro com o pai ou a mãe (enquanto sabem que eles vivem a tempo inteiro com filhos que não são deles) percebemos ainda melhor a exigência a que estão expostos muitos destes rapazes e raparigas que aos 17 e 18 anos já cuidam se si mesmos, da sua roupa e alimentação, enquanto tentam estudar e encontrar novos amigos.

Podemos pensar que o facto de vivermos numa era de viagens ‘low cost’ e termos gerado sucessivas gerações Erasmus torna tudo mais fácil. Por um lado sim, mas por outro não. Nem tudo o que parece, é.

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Sempre que um rapaz ou rapariga sai de casa cedo demais, para morar sozinho longe da família e dos laços mais ou menos protectores a que estava habituado, aumenta ainda mais a pressão interior. Vejo isso à minha volta, de forma muito transparente e evidente nos meus alunos. Dou aulas a 8 turmas por semestre, sei que mais de metade deles vêm de diferentes pontos do país e também sei o que alguns sofrem, mesmo quando tentam esconder que sofrem. Dão sempre sinais e vale a pena estarmos atentos a esses mesmos sinais. Até podem continuar a ter excelentes notas, mas vê-se nos olhos, lê-se nas suas expressões e atitudes que não andam bem. Sentem-se meio perdidos, desprotegidos. Sabem que lhes é exigido muito, muitíssimo, desde muito cedo. Alguns entram em depressão e esses cavam ainda mais a sua solidão. É aflitivo.

Gerir estes cúmulos de stress e exigências depende muito dos traços de caracter, do temperamento de cada um. E dos apoios que tiverem ou conseguirem encontrar dentro e fora das famílias, nos círculos de amigos e conhecidos. Há e haverá sempre os mais resilientes, para quem tudo é uma experiência. Para estes, que sabem tirar o melhor do pior, a vida parece menos ameaçadora, mas para os outros, os que se fecham, os que se isolam, os que deixam de falar e comunicar, as coisas vão agravando. Vão perdendo confiança, coragem e resistências. O sono e o apetite também sofrem distúrbios. Ficam frágeis e cada vez mais vulneráveis. Não falam, não partilham, não põem em comum aquilo que os consome e essa é, porventura, a maior dificuldade que enfrentam os nossos filhos. O aperto de coração é de tal maneira asfixiante, que acham que têm que gerir tudo sozinhos. Não querem desiludir-nos. Ainda por cima olham à volta e acham que vêm os seus amigos mais felizes e os seus pares mais realizados que eles. Comparam-se com eles e afundam ainda mais. Acontece que mais uma vez nem tudo o que parece, é. A comparação com os outros é sempre perversa. Vejo isso nos corredores da universidade que percorro diariamente. Se olharmos só às aparências, realmente parece correr tudo pelo melhor. Mas se virmos com atenção detectamos aqui e ali tristezas maiores, desnortes profundos, muita falta de confiança e uma relutância crescente em acreditar nos talentos e competências próprios. E percebemos que estes miúdos estão a precisar de falar. A urgência mais é imediata é haver quem os possa ouvir, porque são muitos. Muitos mais do que imaginamos. Parecem miúdos fortes e adaptados, mas sentem-se muitas vezes perdidos. Falo por experiência e por ter a sorte de alguns contarem comigo para os ouvir. Comigo e com outros professores com quem se sentem mais em casa, digamos assim.

A abertura para falar e pôr em comum aquilo que vai na alma não nasce de uma imposição e muito menos se estabelece por decreto. As ‘conversinhas impecáveis’ com data e hora marcada, a pedido dos pais, nunca funcionaram com os filhos. E, no entanto, precisamos de saber uns dos outros. É importante para uma mãe e um pai saberem como podem continuar a chegar ao coração do seu filho quando já é um homem ou uma mulher, assim como é vital para um filho ou filha crescidos sentirem que podem contar com a abertura dos pais, especialmente para exporem os seus fracassos e dilemas, sejam eles de que natureza forem. E se é nesta confiança mútua que tudo se joga, então é aqui que percebemos que a comunicação é vital. Absolutamente vital, quero dizer. Voltando ao conceito de família-nação, percebemos que não há pistas infalíveis nem regras universais para dar a ninguém, pois cada família é uma pátria, e em cada território haverá sempre terreno fértil para cultivar e semear. Tem que haver. Vale a pena não desistirmos quando esbarramos nas cercas e muros altos que os nossos filhos erguem quando sentem que precisam de ficar emboscados, sozinhos. Há muitas maneiras de comunicar, directa ou indirectamente, seja através dos amigos dos filhos, dos namorados e namoradas, dos professores, treinadores ou de quem os acompanha de perto.

Nesta lógica e porque nunca esqueci conselhos que aprendi com Daniel Sampaio, na altura em que fizemos juntos várias séries de programas Verdes Anos, sobre os maiores desafios da adolescência e juventude, deixo aqui alguns para pais com filhos ainda pequenos, que queiram apostar ou reforçar a conversa em família. Daniel Sampaio, que era e continua a ser a grande referência para pais e filhos em dificuldades, dizia sempre que é na comunicação que tudo se ganha ou tudo se perde. E reforçava a sua convicção com sugestões que permitiam alargar o campo de possibilidades de comunicação entre pais e filhos: “abram as portas de casa aos amigos desde muito cedo, deixem que eles levem quem quiserem para casa, pode ser um caos, uma desarrumação e até uma devastação na despensa e frigorífico, mas vale a pena para ficarmos a conhecer melhor os nossos filhos. Através dos amigos, das conversas que têm na nossa presença, daquilo que naturalmente falam e contam uns sobre os outros ficamos a saber infinitamente mais sobre eles do que se lhes fizermos perguntas”. Nenhum filho gosta de pais perguntatitvos, é verdade. E raros são aqueles que contam em casa o que viveram na escola. Especialmente quando os acontecimentos são muito negativos ou dramáticos, porque se sentem vítimas de pares que os ameaçam e obrigam a guardar segredo. O silêncio imposto por actos de bullying e qualquer tipo de assédio é mortal. E é no segredo que tudo se agrava, pois quem se sente vítima também se sente fatalmente culpado, e para agravar ainda mais as coisas raramente se sente suficientemente forte para denunciar o agressor.

Tudo isto e muito mais nos inquieta como pais e educadores. Obriga-nos a procurar estratégias à medida de cada família. Apostar na comunicação e reforçar os tempos em que se conversa de forma natural, sem ser com perguntas mais ou menos invasivas, pode passar por convidar um filho de cada vez para almoçar ou fazer um programa diferente, sem razão nenhuma. Só porque sim. Ou ir buscá-los ao liceu sem ser para os controlar, apenas para sentirem que estamos próximos e abrimos o coração e a casa aos amigos. Também passa por estreitar os laços com a escola e os professores, claro. E certamente por lhes prestar mais atenção em casa. E desligar os telemóveis, sempre que possível, quando percebemos que querem falar. Tudo isto constrói relações de confiança que fazem um sentido especial no quotidiano familiar, mas também muito mais à frente, quando eles crescem e se distanciam. Quando sofrem pressões internas e externas brutais que os atiram ao chão. Nunca nada do que conseguirmos fazer será demais para ajudar uma filha ou um filho que andam abatidos, dentro ou fora de casa. Longe ou perto do país. E só conversando com eles podemos saber o que fazer por eles. Só quando criamos espaço para existirem dúvidas, poderemos chegar a respostas. Porque para te ajudar, minha filha ou meu filho, preciso, precisamos de saber de ti.