O Observador noticiou no sábado que o presidente do Parlamento Europeu, o social-democrata alemão Martin Shulz, declarou que “os EUA e a UE não estão preparados para ter Donald Trump como presidente”. Se vivêssemos em circunstâncias normais, talvez pudesse ser dito que um comentário de um alto responsável europeu sobre as eleições americanas (ou vice-versa) não seria o mais indicado. Mas vivemos realmente “tempos interessantes” — o que na verdade quer dizer preocupantes. Por isso, o alerta de Shulz deve, em minha opinião, ser apoiado.
Em boa verdade, a formulação de Shulz foi bastante educada. Quem não está preparado para ser presidente dos EUA é Donald Trump. E chegou a altura, já tarde, de as coisas serem ditas abertamente, em vez de ser dito apenas aquilo (que cada um imagina) que o eleitorado respectivo quer ouvir. Chegou a altura de tratar os eleitores como adultos, em vez de os tratar como espectadores mimados de “reality-shows”.
E as coisas são o que são. Estamos a assistir paulatinamente ao crescimento eleitoral de partidos extremistas na Europa e de candidatos extremistas nos EUA e no Reino Unido. Será certamente importante discutir os factores que poderão estar na génese deste fenómeno. Será importante saber ouvir e decifrar a mensagem dos eleitores. Mas, ao mesmo tempo, é preciso denunciar a mensagem política dos extremistas.
Para a denunciar, é preciso resistir ao instinto tribal de cada partido central para atribuir as culpas do extremismo ao partido central do lado rival.
No caso de Trump, por exemplo, os democratas fazem mal em descrevê-lo como uma versão radical do partido republicano. Inúmeras vozes consagradas do lado republicano têm estado a denunciá-lo como “não conservador”. As revistas “National Review” e “Weekly Standard” dedicaram números especiais à crítica de Trump. Os cronistas George F. Will, Charles Krauthammer, Robert Kagan e John O’Sullivan, para citar apenas alguns, denunciam com alarme o iliberalismo de Trump, do ponto de vista das tradições republicanas conservadoras-liberais.
Acresce que, no caso americano, o problema não é só Donald Trump no lado republicano. Também o socialista Bernie Sanders, do lado democrata, se apresenta com um discurso totalmente alheio às tradições do partido democrata, pelo qual pretende ser nomeado como candidato presidencial.
Em bom rigor, Trump e Sanders apresentam-se com um discurso económico muito semelhante: contra o comercio livre, contra a “mão invisível”, a favor de protecções políticas discricionárias a sectores (que cada um escolhe como) vulneráveis. No plano dos costumes, a convergência é também surpreendente: Sanders é a favor e Trump não é contra as chamadas “causas fracturantes”.
A grande diferença parece residir no carácter “nacionalista” ou “internacionalista” do comum discurso iliberal. Trump carrega a tecla anti-imigração para lá da náusea. Sanders (à semelhança do sr. Corbyn, no Reino Unido) prega a peculiar tecla dos “proletários de todo o mundo: uni-vos”.
É difícil resistir ao paralelo com o que se passou na Europa dos anos 1920-30. Da extrema-esquerda e da extrema-direita emergiram forças populistas, anti-parlamentares, pagãs e anti-liberais, dirigidas por líderes desenraizados de quaisquer tradições estruturadas.
Mussolini fundou o partido fascista e idolatrou o “estado total” depois de ter sido afastado do partido socialista (cujo jornal oficial dirigira). O partido de Hitler, um desempregado errante, intitulava-se “partido nacional-socialista dos trabalhadores alemães”. Do lado comunista, a mesma retórica anti-liberal era servida com invólucro internacionalista por rebeldes entediados com a “normalidade da vida burguesa”.
Em boa verdade, naquela época, esta “normalidade burguesa” acabaria por só subsistir na Suíça e na Suécia, além de ter sido estoicamente defendida no Reino Unido e nos outros países de língua inglesa.
As comparações históricas são muitas vezes enganadoras. Mas manda a prudência que prestemos alguma atenção à experiência conhecida. Um dos erros cruciais dos regimes democráticos naquela época residiu na tribalização das forças centrais.
Inicialmente com o compreensível propósito de travar a fuga dos eleitorados respectivos, partidos do centro-esquerda e do centro-direita silenciaram o seu chão comum. Em vez de atacarem os extremos do seu próprio lado, adoptaram progressivamente o seu discurso, tentando apenas “suavizá-lo”. Quando se deram conta, tinham sido esvaziados pelos extremos de cada lado.
Na presente situação, o caso americano (bem como o britânico) tem, por enquanto, uma vantagem relativamente à europeia continental. Em vez de liderarem partidos extremistas recém-criados e com apelo directo às massas atomizadas, nos EUA e no RU os candidatos extremistas sentem-se obrigados a tentar capturar os partidos centrais. Essa é uma tarefa mais árdua.
Nesses velhos e nobres partidos centrais, os candidatos extremistas têm de enfrentar tradições institucionais bem enraizadas ao longo de várias gerações. Esse tem sido aliás o caso do nobre partido trabalhista britânico, que travou já uma parte das insolências revolucionárias do sr. Corbyn. Infelizmente, nem todas as democracias têm velhos partidos e velhas tradições democráticas que os enraízem nas respectivas sociedade civis e que as providenciem com antecipados sinais de alarme.
Edmund Burke costumava dizer que “para que o mal prevaleça, basta que os homens bons não façam nada”. Por outras palavras, no caso presente, para que as instituições resistam, é preciso que assumam as suas tradições. É absolutamente necessário que cada uma dessas tradições institucionais — os partidos centrais de cada lado, bem como as instituições independentes da sociedade civil — denuncie aberta e solenemente os extremistas do seu próprio lado, em vez de procurar apenas culpar o partido central do outro lado.
PS: Cavaco Silva e A Riqueza das Nações. Na semana passada, quando aqui publiquei um breve elogio de Cavaco Silva, não sabia que ele quis figurar no retrato oficial com a mão sobre a Constituição da República Portuguesa (que jurou cumprir como Presidente) e o livro de Adam Smith, A Riqueza das Nações, de 1776 (por feliz coincidência, a data da Declaração de Independência da democracia norte-americana). Numa cultura política tragicamente marcada pela hostilidade de direita e de esquerda ao autor da “mão invisível”, este gesto merece enfático reconhecimento.