Faz agora um ano, que Jack Welch nos deixou, notícia de obituário que passou despercebido a muitos devido à urgência de consumo de notícias da pandemia entrar em Portugal. Jack Welch, apelidado de “o gestor do século” pela Fortune, devido ao desempenho enquanto CEO da General Electric ao longo de 20 anos, foi também professor e autor. Transmitiu-nos conselhos sábios e estimulantes, muitos com mais de 40 anos, mas que parecem viajar num DeLorean rumo ao futuro, tal é a profundidade e atualidade dos mesmos.

Enquanto gestor acompanha-me e acompanhar-me-á a visão de Jack (como gostava de ser tratado por todos), que o verdadeiro combustível das empresas são pessoas. Pessoas com convicções e motivações que, quando em sintonia com uma visão estratégica indubitável, possibilitam resultados de sucesso. Desta visão, destaco uma lição básica, ou não, que vale a pena relembrar, a de diferenciar os colaboradores através de meritocracia, a também chamada seleção natural. Jack acreditava que 20% da força de trabalho representava as estrelas da empresa e que estas deveriam ser altamente recompensadas; 70% representava uma camada intermédia e onde a aposta em motivação, formação e oportunidades de requalificação deveria ser maior. Os 10% de colaboradores (bottom ten) com baixo desempenho deveriam sair após avisos, sendo que as demissões deveriam ser feitas sem humilhação e sem surpresa. De entre várias críticas ao modelo, Jack rebateu, indicando que “as empresas de sucesso criam empregos e devolvem valor à sociedade, ao contrário das empresas com problemas que não pagam impostos e não são boas para ninguém”. O pensamento de Jack não pode ser visto apenas de um único ângulo capitalista e desumano, dissecado à luz do certo ou errado, deve ser mais uma ponte para a reflexão do funcionamento da economia.

A filosofia de gestão de Jack não seria possível em Portugal. A nossa Constituição não permite o despedimento de colaboradores sem justa causa, apenas possível de justificar através de despedimento coletivo ou comportamento grave e culposo por parte do trabalhador e não por baixa performance ou falta de qualificação. A inflexibilidade laboral que amolece e abranda as empresas não públicas é matéria antiga de debate. Há quem defenda que mais flexibilidade poderia originar mais subvenções e respetivos ónus para o Estado, mas há também a convicção que a situação foi ultrapassada pelos empresários, com contratação precária. Acordos verbais com dinheiro em mão, recibos verdes, modelos de staffing e outsourcing proliferam nas PME, ludibriando as estatísticas do incremento da empregabilidade, mais uma via de os empresários conseguirem flexibilidade para se descartarem dos colaboradores. Atualmente, não havendo mais “gordura precária” por onde cortar, e mesmo com os subsídios de apoio à manutenção dos contratos de trabalho no âmbito da resposta à crise, muitas empresas não aguentam os custos face à diminuta, ou nenhuma, faturação e como não podem demitir individualmente, despedem em bloco unidades, departamentos ou a organização por inteiro. A única maneira “legal”.

Talvez não seja o momento para discussão de uma possível alteração do código do trabalho em linha com a filosofia americana de Jack, mas será um absurdo não elencar no PRR investimentos mais concretos e ainda mais respostas a uma das maiores causas do desemprego -a substituição de colaboradores devido à necessidade de profissionais mais qualificados. A resposta não pode ser apenas qualificar os jovens, é, sem dúvida, importante, mas num país cada vez com menos jovens e com uma população ativa de cerca de cinco milhões, o objetivo principal tem de ser a conversão e atualização de competências. Dir-me-ão que está lá no documento, e está, “Promover a transição digital das empresas, requalificando 36 mil trabalhadores, apoiando 30 mil PME“, mas está de forma residual, sem protagonismo e ambição. Porque não ambicionar mais? Vencer os desafios das baixas qualificações, garantir, em linha com as prioridades da EU, a possibilidade de  todos terem acesso a ferramentas e apoio para o reskilling (requalificação de competências) e o upskilling (reforço de competências).

É necessário garantir que todos os investimentos em empresas propiciam que, em caso de despedimento futuro, as pessoas estão preparadas para ingressar, quase de forma automática, noutro desafio.Por outras palavras, é preciso criar mecanismos que incentivem e a garantam uma requalificação constante ao longo da vida. Não podemos consentir empresas que recebam financiamentos de apoio à inovação com vista à automatização e mantêm 95% dos colaboradores com os mesmo níveis de competências com que entraram. Dou o exemplo de uma empresa de metalomecânica financiada e onde nem um simples estímulo aos colaboradores para a criação de um endereço de email existiu. Mas exemplos não faltam: quais serão os níveis de  qualificação dos recentes desempregados da refinaria de petróleo em Leça da Palmeira? Quantas são as empresas que incorretamente encaram a transformação digital como a simples aquisição de meios informáticos ou a transição para vendas online sem dar prioridade à requalificação? A inversão do modelo de incentivos financeiros tem de ser total, orientada aos colaboradores das empresas e não às empresas. Colaboradores, que com as competências certas ajudarão as empresas atuais e futuras a prosperar, ajudando na evolução e reinvenção dos seus modelos de negócio. Há países a estudar o “cartão de qualificações” individual, onde constam todas as qualificações e certificações alcançadas e onde as empresas são fortemente beneficiadas a nível fiscal por contribuírem para a formação e aumento da literacia digital. Talvez seja este um dos caminhos, seria um desperdício não o endereçar de forma total ou parcial no PRR.

Muitos dos colaboradores que saíram da GE, a maior parte pertencentes ao conjunto dos 10%, vingaram noutras organizações ou criaram ainda os seus próprios negócios, considerando que trabalhar na equipa de Jack os obrigou a qualificarem-se fortemente e que foi uma “escola”. A nossa realidade não se coaduna totalmente com a premissa de seleção natural de Jack Welch, mas pode ser adaptada através de benefícios e aposta nos 20% mais qualificados, requalificação contínua e antecipação das competências certas para 70% da população ativa. Para os não qualificados, fossem apenas 10%, criar mecanismos de auxílio de livre acesso. Todos devem poder viver, aprender, trabalhar e participar num mundo, digital ou não, inclusivo.

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