As crianças voltaram ao centro das medidas de contenção da pandemia. Agora, no âmbito da vacinação. Na última vez que tal aconteceu, a questão era a reabertura das escolas – o país aplaudiu o encerramento das escolas e durante semanas passou ao lado do dano que isso causou (em dois anos lectivos) às nossas crianças. Desta vez, como dizia, é acerca da vacinação – ao que parece, as autoridades públicas preparam-se para distribuir vacinas aos menores seguindo critérios mais políticos do que científicos. Primeira conclusão possível: no “combate” contra a Covid-19, a aplicação de medidas sobre as crianças segue, em primeira prioridade, os interesses dos adultos. Porque, afinal, na medida em que os mais jovens sempre foram os que menos riscos correm quando infectados pela Covid-19, tanto o encerramento de escolas como a vacinação dos mais novos foram e estão a ser discutidos na perspectiva da protecção dos adultos.

Não vou ser eu a desempatar o actual braço-de-ferro entre a ciência e a política. Só posso, enquanto cidadão e pai, ter a maior desconfiança sobre a decisão política de vacinar menores, sobretudo quando tal processo nos é comunicado nestes moldes: com datas, sem explicações oficiais, sem orientações e contra a posição da grande maioria dos especialistas, enfermeiros e médicos pediatras. O mínimo exigível é que a DGS e o governo se pronunciem com clareza sobre este tema, explicando às famílias a sua tomada de decisão (em vez de se escudarem na gestão política).

Enquanto esperamos sentados por tais esclarecimentos, aproveito a oportunidade para ilustrar com uma situação em que medidas sanitárias até bem-intencionadas e aparentemente inócuas podem ter um impacto profundo nos mais novos. O exemplo mais simples de todos: o uso de máscaras pelos adultos tem inúmeros efeitos nos bebés e crianças, entre os quais o atraso no desenvolvimento da fala.

Um grupo de investigadores fez o rastreamento ocular de bebés, de modo a compreender quais eram os seus focos de atenção perante um adulto a falar com eles – na prática, para onde os bebés olham quando estão a interagir com um adulto. O seu estudo concluiu que os bebés de 4 meses focam a sua atenção nos olhos do adulto, mas que a partir dos 8 meses a sua atenção desvia-se para a boca – sendo esse um momento-chave para o desenvolvimento da fala. O estudo antecede a pandemia e, agora, perante o cenário de milhões de bebés terem lidado com adultos usando máscara, os investigadores não têm dúvidas sobre os efeitos: haverá perturbação do desenvolvimento da fala – que se espera recuperável, mas que em muitas crianças poderá potenciar dificuldades futuras. Há mais exemplos possíveis sobre o impacto das máscaras nas crianças – na compreensão das emoções ou até na criação de imunidades a outras doenças. Leiam este artigo de Henrique Raposo, que toca nestes pontos.

Para que fique claro: com este exemplo, não estou a sugerir que as máscaras não foram uma necessidade para a abertura segura de creches, berçários e jardins de infância. Estou apenas a sublinhar um ponto-chave que tantas vezes é esquecido: todas as medidas têm consequências e algumas dessas consequências são imprevisíveis e eventualmente de efeitos duradouros para o desenvolvimento das crianças (e futuros adultos). Fazer de conta que não é assim é simplesmente desonesto. E, por isso, ir mais longe nas medidas do que possa ser estritamente necessário representa uma opção eticamente questionável: a de sujeitar as crianças a riscos que, mesmo que não se chamem Covid-19, poderão vir a ser ainda mais prejudiciais para a sua saúde e desenvolvimento. Se as autoridades públicas o fizerem, que o façam com dignidade, cumprindo o seu dever de assumir responsabilidades e explicar opções. Sob o risco de serem desautorizadas e deslegitimadas.

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