No final dos anos 80, passou a ser possível falar descomplexadamente da direita liberal conservadora em Portugal, discutir os seus gostos culturais e conhecer as obras e autores que a inspirariam. Foi o tempo d’O Independente. E, na academia, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. No começo deste século, a mesma direita, em muitos casos uma mistura de autores e leitores d’O Independente, começou a escrever em blogs e, depois, na revista Atlântico. Entretanto, alguns desses nomes passaram para os jornais e as televisões, onde espalham a sua opinião. Nos últimos tempos, essa tribo dividiu-se por uma questão que tanto pode ser tática como de fundo. A guerra da Ucrânia é a oportunidade para a direita liberal conservadora reencontrar uma história e um significado comum. Em Portugal, e na Europa. É essa a principal lição que, se se quiser, se pode retirar do livro A Bolha, uma direita antipopulista, de Ricardo Marchi, recentemente publicado.

O livro de Marchi é, inevitavelmente, incompleto e discutível – o que são duas virtudes num livro – mas é um esforço interessante e relevante para perceber como surgiu, se formou, e quem inspirou quem em parte da direita liberal conservadora portuguesa nos últimos trinta anos.

Resumindo e interpretando a História que Marchi conta, a direita liberal conservadora nasce sem avós. Não tem ascendentes no tempo do Estado Novo nem reclama a herança dos pensadores de direita do anterior regime. Pelo contrário.

Comum a quase todos os autores que Marchi refere é a escrita ou leitura de O Independente. E não é tanto por causa do anti-cavaquismo do jornal. Foi, sobretudo, porque com O Independente passou a ser possível identificar uma cultura, da música à literatura passando pela teoria política, maioritariamente anglo-saxónica em que essa gente se revia. Uma identidade que permitia discutir com a esquerda, sem ter de discutir nos termos da esquerda: como se toda a direita fosse apenas herdeira de Salazar e Marcelo Caetano e, de um modo geral, inculta.

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O Independente mostrou ao país que era possível ser-se liberal e conservador sem se ser reacionário, que havia lá fora pensamento liberal e conservador que não se confundia com a tradição portuguesa do Estado Novo, nem com a tradição continental e francesa. Outra nota curiosa é que era essa gente quem mais se opunha ao governo que a esquerda considerava de direita. Segundo os conceitos actuais, seria a direita fofinha, uma direita de que a esquerda gostava. Com particular entusiasmo às sextas-feiras, quando o jornal saía.

Enquanto O Independente mostrava que se podia ser de direita, culto e cool, o Instituto de Estudos Políticos (IEP) da Universidade Católica apresentava autores que as escolas de ciência política das universidades públicas ignoravam intencionalmente. Sem ser ideológico, obviamente, a verdade é que sem o IEP provavelmente continuar-se-ia a não conhecer ou discutir em Portugal autores como Hayek ou Oakeshott. Ou mesmo Burke. Só para referir os mínimos.

Anos mais tarde, primeiro nos blogs e depois na revista Atlântico, essa direita liberal conservadora ganha adesões. Gente que escrevia e gente que lia O Independente constrói uma revista que estrutura intelectual e ideologicamente o discurso político (aqui já é de política que se trata) de grande parte desse espaço, em tempo de combate.

Se O Independente tinha nascido nas vésperas da queda do Muro de Berlim, a Atlântico nasce na ressaca do 11 de Setembro. E isso nota-se. O jornal aproveita um espaço que se abre, aproveita a vitória das ideias que defende. A revista responde a um tempo de ameaça ao mundo que representa, ao Ocidente. Não basta ter direito a existir, é necessário combater.

A primeira e mais interessante parte do livro de Ricardo Marchi serve para nos explicar quem eram, por onde andaram e como se formaram os que são ali descritos como os pensadores, intelectuais, comentadores ou opinadores da direita liberal conservador portuguesa do final do século passado e do início deste (eu, aparentemente incluído, faça-se esse disclaimer). A segunda parte, mais curta e a que falta mais distanciamento temporal, serve para tentar perceber porque é que essa direita liberal conservadora sofre hoje um enorme cisma à volta do tema da relação com o populismo. Ricardo Marchi diz, com razão, que essa direita liberal conservadora não é ela própria populista, nem convive bem com as ideias do populismo. Divide-se, no entanto, entre os que recusam qualquer aproximação ao populismo de direita – seja tática, seja ideológica – e os que defendem a necessidade de aproximação tática (que em alguns casos parece pelo menos encontrar alguma proximidade ideológica.se não nas propostas, pelo menos nos adversários e nas obsessões). Aqueles que há 20 ou 30 anos estavam unidos pela descoberta e discussão de temas e autores, agora dividem-se sobre como chegar ao poder. E para quê.

Se o final do século passado é uma espécie de adolescência da direita liberal conservadora portuguesa, de descoberta e do fascínio de fazer novos amigos, esta segunda década do século XX é uma fase da vida em que se discute mais o que se tem do que o que se é. O que se quer ter e não o que se quer ser.

Tal como a queda do Muro de Berlim e o 11 de Setembro estruturaram o mundo em que vivemos, e determinaram os termos da discussão política, a invasão russa da Ucrânia também é um momento definidor. Então, como agora, a direita liberal conservadora distingue-se absolutamente dos radicais, à esquerda e à direita, que aberta ou inconfessadamente não desejam a vitória da Ucrânia nem compreendem a sua vontade de aderir às democracias liberais de mercado da União Europeia e da aliança defensiva transatlântica, a NATO. Então, como agora, está naturalmente mais perto dos seus adversários na esquerda moderada, do que da direita (e da esquerda, claro) radical ou extrema. E tem a oportunidade de o dizer com clareza. Porque é útil, porque é verdade e, sobretudo, porque é importante.

Esta guerra é, também, uma oportunidade para discutir a Europa em termos que esta tribo tem normalmente dificuldade em fazer. Não se trata de ser federalista ou eurocéptico. Trata-se de reconhecer o valor geopolítico da União Europeia, e querer influenciar o seu papel.

Se a direita liberal conservadora quer pensar sobre como é que pode voltar ao poder – esse parece ser o problema que mais a apoquenta hoje em dia – mais do que descobrir quais é que são as bandas que prefere, os escritores que admira, os poetas que não são património da esquerda, em vez de desistir perante o Chega, renunciando a convencer e ganhar, esperando que André Ventura os ajude a regressar ao poder, é altura de essa direita perceber a enorme transformação que a guerra da Ucrânia representa, como ela mostra um conjunto de ideias e de alianças que estiveram e continuam a estar certas, e como esse mundo e essas propostas são tão importantes numa Europa que seja uma aliança de países soberanos, livres, democráticos e ocidentais. E, sim, abertos ao mundo.