«Então diga-me lá, já que me interpelou sem ser chamado: que sensação é esta de catástrofe iminente? De que todos os caminhos que nos apresentam redundarão inevitavelmente no mesmo trágico desfecho? De que o Homem, tomado por uma inconcebível e sôfrega avidez, se apoderou do ananké e não há nada que possamos fazer para nos soltarmos das amarras? Não sei o que é, mas estou há dois anos a senti-lo a pairar como um espectro azucrinante, a roubar-nos chão, a esfumar-nos ilusões, a despojar-nos de futuro.

Tenho aversão a histerias despropositadas, mas há que o admitir: estamos a viver uma macedónia de todas as distopias literárias que líamos com a altivez da invulnerabilidade. O facto de estarmos avisados por diversas produções culturais não só não despertou em nós os alarmes, como ainda agravou a resistência à admissão: cenários como os apresentados pela agenda do Great Reset não chocam pela novidade ou inverosimilhança; são sim dispensados como ficcionais porque sempre assim os concebemos.

Perceba então, amigo, que exigir açaime começa a ficar dê-mo-dê. Estamos já na mais recente fase deste novo normal. O novo normal, bem entendido, não são as mordaças e distanciamentos, como tentaram defini-lo. Caracteriza-se antes por uma voluntária subjugação aos inquestionáveis desígnios dos nossos mestres e dos nossos pares, rapidamente e em força rumo à aniquilação dos resquícios ilusórios que ainda temos de sermos livres. Dizia, então, que estamos numa nova etapa do novo normal, o que envolve, presumivelmente, renovado virtuosismo. Este implicou, porém, um bizarro volte-face. Antes, o virtuosismo passava por fazer tudo o que estivesse ao nosso alcance para salvar a todo o custo cada vida humana, singular e inestimável. Agora, o que nós temos de fazer é ir para a guerra com uma potência nuclear.

Formulação curiosa esta, “nós”. Pronome agremiador e conciliatório, atribui a uma acção bélica de trágicas consequências – e de grande interesse para os vampiros que pastoreiam a humanidade – um propósito colectivo, uma investida inevitável de honra ferida, como se fôssemos todos os 12 de Inglaterra. Mas agora diga-me, o que é isto de “nós”? Sou eu e o senhor? Quem mais faz parte da equipa? A Ana Gomes, pela recém-descoberta veia belicista, também deve fazer. Quem mais? Biden? Trudeau? Macron? Ora aí está a equipa perfeita: eu, o senhor, a Ana Gomes, o Biden, o Trudeau e o Macron. Não sejam ridículos e, clemência, poupem-me o vosso mundo encantado do bem contra o mal. O “ocidente” tem o Mal dentro de portas e é esse que me perturba; não concebo qualquer valor ou chão comum a nenhuma das pessoas citadas para lutar pelo lado delas. Que morram elas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estas construções mediáticas hipócritas e infantilmente dualistas são-me indigestas. Peço-lhe que veja, por exemplo, o humorista da Ucrânia, a nova crush que o ministério da verdade nos enfia pela goela abaixo como um exemplo de coragem, força e patriotismo que não se via desde Viriato. Todas as suas aparições tresandam a falso, a encenado, a um melodramático ensaio teatral. Expor a burla, contudo, está fora de questão. Ninguém se quer ver acusado de putinista; é quase tão mau como ser – vade retro – negacionista.

Envolto nesta farsa hipnótica, não me surpreende, portanto, ser tão frequentemente acometido por uma forte sensação de solidão. Salvam-me as pessoas de quem me fui rodeando, que me ancoram à realidade e me conservam a sanidade. As massas, essas, são confusas, densas e odiosas. Começo a ser, também eu, culpado da desumanidade de que frequentemente os acuso: para mim, começam a não passar de autómatos cujos únicos propósitos são gastar recursos e anuir quando instruídos para executar uma tarefa ou para ter determinado entendimento sobre um assunto. Sou eu que sou desumano ou é progressivamente mais difícil empatizar com seres que, embebecidos pela superficialidade da sua bondade, são na verdade tão desprovidos de empatia?

Depois de uma pancada na cabeça, basta ao cérebro humano uns segundos sem oxigenar e pimba: curto-circuito irreversível e torna-se uma massa inútil. Assim é a fragilidade das nossas ideias e valores; situam-se num plano etéreo, mas são do mundo físico tão dependentes como qualquer coisa concreta. Pode ser isso: toda esta insanidade pode não passar de privação de oxigenação no cérebro. Culparia as máscaras, mas uma sociedade que bloqueia voluntaria, compulsiva e obsessivamente as suas vias respiratórias já não têm o córtex a funcionar na perfeição. Por isso lhe rogo, que ambos não passamos de insignificantes peões: tenha humanidade e não piore a situação.»

– Senhor, eu não sei de nada disso, nem sei o que é um trudô. Mas tem mesmo de colocar a máscara. São as regras.