Um dia, andava eu no 5º ano, alguém descobriu que a Carla Silva tinha tido o período. Entrámos em frenesim. Começámos todos a andar atrás dela a repetir a lengalenga: “A Carla tem o período! A Carla tem o período!” Isto durou o intervalo da manhã e o da hora do almoço. No da tarde, já farta, a Carla, que nos tinha ignorado o dia todo, lá se virou para trás. Encarou-me, irritada. “O que é que vocês estão para aí a dizer, palermas?”.
Apesar de ter menos 20 cm do que ela, não me atemorizei:
“Tu tens o período, Carla!”, atirei-lhe à cara.
“Minha abécula, tu sabes o que é o período?”, perguntou ela, mais enfadada do que aborrecida.
E eu: “Não”.
E não sabia mesmo. Sabia o 11 do Sporting, que caminhava para um desapontante 4º lugar no campeonato, sabia que cromos me faltavam para acabar a caderneta do Euro88, sabia de cor a letra do Dartacão, mas ainda não sabia o que era o período. Quase 35 anos depois, descubro que continuo a não saber.
Até esta semana, pensava que a menstruação era “o corrimento fisiológico de sangue e tecido mucoso do revestimento interior do útero pela vagina” (citando a Wikipédia, para evitar usar plebeísmos), situação que ocorre nas mulheres mais ou menos de mês a mês. Pensava também que, tirando uma minoria de mulheres com sintomas extremos causados por enfermidade crónica, a menstruação era uma condição normal, não impeditiva. Com a proposta do PAN para uma baixa específica para a menstruação, percebo que afinal o período é uma doença incapacitante, que necessita de protecção especial que uma baixa médica normal não fornece.
A proposta foi logo chumbada, por isso não se chega a conhecer os pormenores, mas se a ideia é transformar crendice em lei, é provável que o PAN também sugira que, quando menstruadas, as cozinheiras estejam dispensadas de fazer maionese, para não deslaçar.
Por falar em mitos sobre menstruação, há culturas que consideram que a mulher com o período tem poderes mágicos. O PAN subscreve, na medida em que se uma mulher não se mexe e lhe aparece dinheiro no bolso, isso é magia.
Havia um anúncio de uma marca de tampões que garantia que, mesmo com o período, as mulheres podiam vestir roupa branca. No reclame, dava a ideia de que se referiam a calças. Pelos vistos, era à bata branca de uma paciente de hospital.
É óbvio que muito em breve vamos ter de rever as quotas de género. Se as mulheres estão incapacitadas entre 15% a 25% do tempo, não basta haver tantas mulheres como homens na direcção de uma empresa. Para fazerem o mesmo trabalho que os colegas do sexo masculino, é preciso que haja mais mulheres.
O PAN podia ter-se poupado ao trabalho de redigir esta proposta e copiado directamente de outro regulamento que já prevê situações de excepção para uma mulher com o período. Falo do Levítico, onde Deus estipula as normas que disciplinam a vida das menstruadas, da forma picuinhas a que nos habituou:
“Quando uma mulher tiver o fluxo de sangue que corre do seu corpo, permanecerá durante sete dias na sua impureza. Quem a tocar ficará impuro até à tarde. Todo o objecto sobre o qual ela se deitar, durante a sua impureza, ficará impuro (…) Se um homem coabitar com ela e com a sua impureza o atingir, ficará impuro durante sete dias, e todo o leito em que se deitar ficará impuro.
Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue durante vários dias, fora do tempo de normal de impureza, isto é, se o fluxo se prolongar para além do tempo da sua impureza, ficará impura durante todo o tempo desse fluxo, como no tempo da sua impureza. (…)
Quando terminar o fluxo de sangue, contará sete dias e, depois, ficará pura. No oitavo dia, tomará duas rolas ou dois pombos, e levá-los-á ao sacerdote, à entrada da tenda da reunião. O sacerdote oferecerá um em sacrifício pelo pecado e outro em holocausto; e purificá-la-á da impureza do fluxo diante do SENHOR.” (Levítico, 15:19-30)
“Se um homem coabitar com uma mulher durante o período menstrual, ao descobrir a sua nudez, descobre o seu fluxo e ela mesma descobre a fonte do seu sangue. Serão ambos eliminados do meio do povo.” (Levítico, 20:18).
De certo modo, trata-se até de legislação mais avançada do que a proposta pelo PAN. A Bíblia não só dá 7 dias de baixa, em vez de 3, como também a alarga ao marido, numa demonstração de preocupações sociais muito moderna.
Por outro lado, nota-se bem que são leis arcaicas e que o PAN terá de as adaptar antes de poder submetê-las a aprovação. Para já, há que riscar o sacrifício de animais. Hoje em dia, não sacrificamos pombos. Sacrificamo-nos aos pombos, como sabe quem se senta em esplanadas e vê o seu lanche roubado por passarada insolente. Depois, é preciso adequar a linguagem. Há três mil anos, os pastores semíticos eram selvagens supersticiosos que ainda se referiam rudemente a incapacidade como “impureza” e a mulher como “mulher”, ignorando que há homens que também menstruam, nomeadamente os que têm um útero.
Se bem que, nesse sentido, o PAN terá de ser mais rigoroso na formulação das suas regras sobre as regras. Não basta dizer “pessoa com útero”, porque isso abre a porta a interpretações abusivas. Por exemplo, se eu for à morgue e, depois de uma autópsia, levar para casa as miudezas de uma defunta, posso afirmar que sou possuidor de um útero. E de dois fígados, dois corações, dois estômagos e quatro pulmões.
Antigamente, um homem que dissesse “coitadinha, deve estar naquela altura do mês”, era um machista ordinário. Hoje é um progressista sensível. Nunca a misoginia foi tão inclusiva.