O projeto da unidade europeia conhece hoje uma crise de confiança sem precedentes. Em sucessivas eleições nacionais, e também nas últimas eleições para o Parlamento europeu, crescem as forças que lhe são hostis. Depois de vários alargamentos a outros países e de cada vez mais candidaturas à adesão, eis que um dos mais importantes Estados membros da União Europeia, o Reino Unido, quer deixar de o ser. As grandes expectativas que Estados do Sul e do Leste da Europa tinham no momento da adesão dão agora lugar a desilusões.
Neste contexto, manifestar confiança no projeto da unidade europeia é, na verdade, “remar contra a maré”. Mas há alturas em que é bom fazê-lo, porque se corre o risco de esquecer aspetos positivos que já nos passam despercebidos e bloquear autênticos progressos da civilização. Foi essa confiança que quis manifestar a Igreja Católica, através do seu organismo junto da União Europeia (a COMECE), que organizou, de 27 a 29 de outubro, um congresso no Vaticano com o título (Re)pensar a Europa – Contributo dos cristãos para o futuro do projeto europeu. Num clima de descrença e pessimismo, esta iniciativa, a que se associou o Papa Francisco, quis ser um sinal de esperança.
O congresso reuniu cerca de 350 participantes, de entre responsáveis eclesiásticos, políticos e académicos de vários quadrantes, pessoas empenhadas em organismos da Igreja e da sociedade civil, cristãos de várias denominações. Tive ocasião de nele participar, como presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, integrado na delegação dos convidados da Conferência Episcopal portuguesa.
Mais do que uma sucessão de conferências, foi intenção dos organizadores criar espaços de diálogo livre e transparente, dentro da Igreja e desta com a sociedade europeia.
Neste diálogo é compreensível que surjam perspetivas diferentes (por vezes, complementares). Assim, por exemplo, os participantes dos países da Europa de Leste tendem a ver em certas políticas da União Europeia (que, na verdade, extravasam do seu âmbito de competência) uma agressão aos valores tradicionais, que muito prezam, de proteção da vida e da família. Nesses países, há quem abusivamente invoque pretensos “valores europeus “ para justificar tais agressões. Nem sempre, porém, os cristãos desses países demarcam esta legítima preocupação de reações nacionalistas que, invocando a identidade cristã da Europa, pretendem desta excluir pessoas de diferentes culturas e religiões. Como afirmou um dos oradores do congresso (um cristão com responsabilidades políticas), as raízes cristãs da Europa não são um património a preservar como propriedade privada que exclui outros, mas um património a partilhar com todos, que impele os cristãos a acolher e servir pessoas de outras culturas e religiões.
A valorização dessas raízes cristãs não deve encerrar-nos no passado, mas faz-nos olhar para o futuro (como salientou o cardeal Reinhard Marx, presidente da COMECE, na apresentação do congresso). Essas raízes são destinadas a dar fruto hoje e no futuro e essa é a responsabilidade dos cristãos que vivem hoje na Europa. Não se trata de impor nada, mas de oferecer um contributo. É essa a motivação profunda da iniciativa Juntos pela Europa, que, já desde há mais de uma década, congrega cerca de trezentos movimentos e comunidades de várias denominações cristãs.
Os cristãos podem, pois, dar hoje à Europa um contributo específico e fecundo.
A visão cristã da reconciliação e da paz esteve na origem do projeto da unidade europeia e movia os seus “pais fundadores”. Esse projeto é, antes de mais, um projeto de paz, que permitiu que, pela primeira vez na história deste continente, uma geração tenha vivido sem conhecer o flagelo da guerra. Este é um bem que às jovens gerações hoje até passará despercebido.
Também pela primeira vez na história, esse projeto pretende que o sucesso e a prosperidade de cada um dos países europeus não seja construído à custa do sucesso e da prosperidade dos outros, mas que todos eles beneficiem do progresso social de forma equitativa. Esta é, no fundo, a concretização da noção do bem comum, princípio estrutural da doutrina social cristã.
Unidade na diversidade — é este o mote da União Europeia. Os cristãos acreditam num Deus uno e trino. Esta sua fé não pode deixar de servir de luz para, salvaguardas as devidas proporções, ajudar a viver esse mote, a harmonizar diferenças numa unidade que não é uniformidade.
Na conclusão do congresso, discursou o Papa Francisco. Depois, este quis saudar pessoalmente cada um dos cerca de trezentos e cinquenta participantes, o que fez de forma calorosa e sem qualquer sinal de cansaço.
Esse discurso (acessível em várias línguas, inglês e espanhol) aprofunda muitos dos aspetos em que se pode traduzir hoje o contributo dos cristãos para o projeto da unidade europeia, enfrentando vários dos desafios com que hoje se defronta a Europa e que não se restringem às questões políticas ou económicas. É mais um de uma série de históricos discursos papais sobre a Europa. Merece uma leitura atenta.
O Papa começa por salientar a novidade do cristianismo, em relação às civilizações da Antiguidade, no que se refere às noções de pessoa e comunidade. Evocando São Bento, patrono da Europa, afirma que com o cristianismo já não contam papéis sociais, riqueza ou poder, mas pessoas como imagem de Deus e com uma natureza comum (não adjetivos, mas substantivos). E pessoas concretas, com um rosto, que são mais do que números ou estatísticas. Depois, o sentido da pertença a uma comunidade: «deturpa-se o conceito de liberdade quando ele é interpretado como se fosse o dever de estar sós, desligados de qualquer vínculo, e assim fosse construída uma sociedade desenraizada, privada do sentido de pertença e de herança»
Esse sentido de pertença começa na família, «união harmónica das diferenças entre homem e mulher, tanto mais verdadeira e profunda quanto mais capaz de gerar, de se abrir à vida e aos outros».
Ao realçar a dimensão inclusiva da Europa, é abordada a questão das migrações:
«É responsabilidade comum dos dirigentes europeus favorecer uma Europa que seja uma comunidade inclusiva, livre de um mal-entendido de fundo: inclusão não é sinónimo de nivelamento indiferenciado. Pelo contrário, somos verdadeiramente inclusivos quando sabemos valorizar as diferenças, assumindo-as como património comum e enriquecedor. Nesta perspetiva, os migrantes são um recurso, mais do que um peso. Os cristãos são chamados a meditar seriamente na afirmação de Jesus: “Eu era forasteiro e vós recebestes-me” (Mt 25,35). Sobretudo diante do drama dos refugiados, não podemos esquecer o facto de estarmos perante pessoas, as quais não podem ser escolhidas ou descartadas a seu bel prazer, segundo lógicas políticas, económicas ou até religiosas» (não se justifica, pois, um tratamento diferenciado de refugiados cristãos ou muçulmanos).
«Todavia, isto não é contrário ao dever que recai sobre qualquer autoridade de governo de gerir a questão migratória “com a virtude própria do governante, isto é, a prudência”, que deve ter em conta quer a necessidade de ter um coração aberto, quer a possibilidade de integrar plenamente aqueles que chegam aos país no plano social, económico e político. Não pode pensar-se no fenómeno migratório como um processo indiscriminado e sem regras, mas também não podem erguer-se muros de indiferença ou de medo. Pela sua parte, os próprios migrantes não devem descurar o grave ónus de conhecer, respeitar e até assimilar a cultura e as tradições da nação que os acolhe».
Nestas palavras, vemos a resposta a acusações de irrealismo, como se a posição do Papa fosse de total e irresponsável abolição de fronteiras; assim como a demarcação de um multiculturalismo que conduza ao isolamento das várias comunidades de migrantes.
A Europa deve ser um espaço de solidariedade: «Uma União Europeia que, ao enfrentar as suas crises, não redescobre o sentido de ser uma única comunidade, que se apoia e ajuda – e não um conjunto de pequenos grupos de interesse –, perderá não apenas um dos desafios da sua história, mas também uma das maiores oportunidades para o seu futuro».
Essa solidariedade deve unir também as várias gerações. Afirma o Papa a este respeito:
«A partir dos anos Sessenta do século passado verifica-se um conflito geracional sem precedentes. Ao entregar às novas gerações os ideais que fizeram grande a Europa, pode dizer-se hiperbolicamente que à tradição se preferiu a traição. À rejeição daquilo que vinha dos pais, seguiu-se, assim, uma dramática esterilidade. Não apenas porque na Europa nascem poucos filhos – o nosso Inverno demográfico -, e muitos são aqueles que foram privados do direito de nascer, mas também porque nos descobrimos incapazes de entregar aos jovens os instrumentos materiais e culturais para enfrentar o futuro. A Europa vive uma espécie de deficit de memória. Voltar a ser comunidades solidárias significa redescobrir o valor do nosso passado, para enriquecer o nosso presente e entregar às próximas gerações um futuro de esperança.»
E o Papa termina o seu discurso citando a célebre carta a Diogneto, que remonta ao século II: «como é a alma no corpo, assim são os cristãos no mundo». Os cristãos são chamados a dar uma alma à Europa, não para ocupar espaços, mas para animar processos, que possam gera novos dinamismos na sociedade. Porque da fé cristã brota «sempre uma esperança alegre, capaz de mudar o mundo».
Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz