Foi ontem, às 8h05 da noite, que terminou a presidência imaginária de Catarina Martins. Durante duas semanas, a porta-voz do BE fez de conta que era um presidente absoluto: demitiu o governo de Passos Coelho, indigitou António Costa como primeiro-ministro, e pôs condições a um governo minoritário do PS. De facto, não estava sozinha na fantasia. Para quem ouvisse os seus putativos sócios na “maioria de esquerda”, parecia estar em curso uma espécie de revisão constitucional. O governo do país ia sair dos conciliábulos secretos de uns quantos chefes de partido, à revelia dos resultados eleitorais, do presidente da república, e até dos deputados eleitos. Eis como alguém que 68% dos eleitores rejeitou como primeiro-ministro se preparava para ser primeiro-ministro.
A intervenção do Presidente da República teve assim um primeiro efeito: salvaguardar o regular funcionamento das instituições democráticas. A constituição manda que o Presidente da República nomeie o primeiro-ministro tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidos os partidos políticos com representação parlamentar. Foi o que o Presidente fez, ao abrigo das suas prerrogativas constitucionais e segundo o critério que tem sido o da democracia portuguesa desde 1976: escolher o líder do partido mais votado (ou, se quiserem, menos rejeitado). Cabe agora ao primeiro-ministro indigitado apresentar um governo. E caberá depois à Assembleia da República votar o seu programa. Depois de duas semanas de desvario oligárquico, foi como se a constituição tivesse sido restaurada ontem à noite.
Por menos jeito que isso dê à nossa oligarquia, a constituição não reduz o Presidente da República a uma simples chancela. O Presidente é eleito por sufrágio directo e universal dos cidadãos portugueses. Desempenha um papel político que é simultaneamente de orientação, de garantia e de representação. Mais do que o direito, tem a obrigação de ajuizar e de decidir. Nesta fase do mandato, em que os seus poderes estão limitados, mais importante se torna a comunicação do seu pensamento. Por isso mesmo, têm todo o cabimento as considerações políticas que o Presidente Cavaco Silva fez no discurso de ontem, para grande alarido dos oligarcas.
O Presidente estranhou que os grandes partidos de governo do regime estivessem tão divididos e tão incompatibilizados, precisamente quando as suas propostas parecem tão conciliáveis. Não tem razão? Não há, com efeito, algo de artificial e de forçado neste conflito em que partidos com programas aproximados se combatem, e partidos com programas opostos se entendem?
O Presidente avisou para as prováveis consequências de fazer depender uma política de consolidação orçamental e de manutenção do euro do apoio de partidos que sempre discordaram veementemente de uma e de outra. Não faz sentido? Como é que uma tal fórmula de governo poderia ser estável? Como é que iria inspirar confiança, dentro e fora do país?
É preciso lembrar duas coisas aos mais distraídos. Uma é a situação financeira de Portugal, saído de um ajustamento difícil e ainda precário. Outra é a Constituição, que não é a Constituição de 1976 — a caminho do socialismo sob a tutela do MFA –, mas a constituição revista em 1982, 1989, 1992 e 1997: a constituição de um regime cujos princípios são a democracia pluralista, a economia de mercado e a integração europeia — a qual, vale também a pena lembrar, não é uma mera questão de política externa, mas o enquadramento internacional das opções internas que dizem respeito à democracia pluralista e à economia de mercado. A oligarquia política, na sua disputa do poder, parece disposta a pôr tudo isto em causa. O Presidente tem a obrigação de obstar a que se perca a noção dos princípios do regime e do interesse nacional. Está a condicionar os políticos, vai limitar as suas opções? É esse o seu papel, foi para isso que foi eleito democraticamente. Viva a Constituição e Deus guarde o Presidente Cavaco Silva.