No outro dia vi Maria Luís Albuquerque a falar na televisão, na chamada “Universidade de Verão” do PSD. E o que me chamou a atenção não foi a óbvia inteligência dela, nem a simpatia, nem o domínio técnico sobre aquilo de que falava. Foi outra coisa, mais simples: a normalidade. Uma normalidade que, apesar de tudo, é partilhada por muita gente deste Governo, inclusive o primeiro-ministro. E lembrei-me de um mail que, logo a seguir às eleições que afastaram Sócrates do poder, enviei a um amigo, dizendo-lhe “Já se respira melhor”. E ele concordou. Porque durante os governos (sobretudo o segundo) de Sócrates a normalidade não estava na ordem do dia.

Às vezes faz bem tentar reconstruir um tempo não exactamente a partir de relatos factuais, mas, na medida em que uma coisa se pode fazer independentemente da outra, a partir da tentativa de descrição de um ambiente. É o que aqui procurarei fazer acerca dos anos de Sócrates, servindo-me de algumas ideias muito gerais que vêm imediatamente ao espírito.

Aparência. Não houve certamente outros tempos, no passado recente português, em que um Governo quisesse tão militantemente funcionar com um país que era um puro acto de imaginação ao qual pouco correspondia na realidade. E a separação entre a aparência e realidade foi, é claro, aumentando com os tempos, até chegar aos delírios do TGV e dos aeroportos. Ficou o aeroporto de Beja como monumento e ilustração para o futuro.

Havia naquilo, sem dúvida, uma mistura de ingenuidade e de perversidade. No princípio, creio, era a ingenuidade que era dominante, a ingenuidade do auto-proclamado “provinciano” Sócrates que saltava da Irlanda para a Finlândia como “modelos” para Portugal, como se não existissem história, tradições, costumes e o mundo fosse um papel quadriculado. Nisso, e é uma condição atenuante, ele não fazia senão seguir o espírito do tempo e uma escola de pensamento comum em muita gente da União Europeia. Mas, pouco a pouco, foi a perversidade política que começou a contar mais. A aparência começou a servir para tapar a realidade, ou, mais profundamente até, para a negar.

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Se se quiser, de “europeu” Sócrates passou a “latino-americano”. Não era só a publicitada amizade com Chávez que contava: lembram-se daquele extraordinário encontro nos estaleiros de Viana do Castelo? E, já agora, lembram-se dos resultados? Sócrates ele próprio tornou-se “chavista” à sua maneira. Os tiques autoritários tornaram-se mais manifestos. Na altura, falava-se de “arrogância”. Não parece ser a boa palavra. A arrogância supõe uma espécie de indiferença em relação ao outro. Em Sócrates não havia essa indiferença. Havia, isso sim, um investimento passional na conflitualidade, o que é uma coisa muito diferente.

Egotismo. Certamente que os líderes políticos precisam sempre, em maior ou menor escala, de suscitar nos eleitores uma relação afectiva, algo que os ligue à sua própria pessoa. Mas, regra geral, a coisa fica dentro dos limites do razoável. Em Sócrates, pelo contrário, tudo se tornou desmesurado, isto é, irracional. O país tornou-se um campo de batalha entre os adoradores de Sócrates – continuam, de resto, a existir – e aqueles que já não o suportavam. E a sua acção política em nada contribui para atenuar esse fosso. Muito pelo contrário: tudo fez para o aprofundar. Nas discussões na Assembleia da República, por exemplo, tudo se passava muito além da costumeira truculência que a tradição permite. A cada momento, era a sua própria pessoa que, antes de mais, Sócrates expunha e era a sua própria pessoa (e não as suas políticas) que primeiramente afirmava.

Linguagem. Nos tempos iniciais, a linguagem de Sócrates brilhava apenas por uma espécie de lirismo burocrático incolor e sem sabor que vinha com o ar do tempo. Mas, também aqui a pouco e pouco, algo mudou. E a agressividade (com o inevitável complemento da auto-vitimização) veio ao de cima. Veio o “bota-abaixismo” (horrenda expressão) e a “calúnia” e a “maledicência” e outras coisas assim. O país passou a ser governado por uma personagem de telenovela mexicana. Esse hábito ele não perdeu. Ainda no outro dia, num programa da RTP que, vá lá a gente saber porquê, ele tem para falar de si, referiu-se, creio que a propósito de uma notícia do Correio da Manhã, aos “pistoleiros do costume”. Ignoro se a notícia tinha fundamento ou não, e se ele tinha razão ou não, mas é a linguagem que aqui interessa: “pistoleiros”. Ainda por cima, Deus lhe perdoe, não percebe que a sua postura (agora requentada) de “animal feroz” o faz um verdadeiro e natural personagem das primeiras páginas do Correio da Manhã.

Ódio. A acabar esta breve lista, o ódio. Os tempos de Sócrates foram tempos de ódio. É verdade que ele disso foi vítima, embora sentimentos muito mais comuns fossem a detestação (que é uma coisa diferente, menos “existencial”) e o desprezo. Mas Sócrates odiava, odiava existencialmente. Muita gente, e em particular alguns jornalistas. O caso mais célebre é o de Manuela Moura Guedes. Sabe-se o que aconteceu. E outros saberão também as coisas por que passaram. Era, tipicamente, um ódio indisfarçado, um ódio que visava destruir, e, por conseguinte, algo que ultrapassava, e de longe, pela sua natureza, os limites da guerra política. Voluntariamente, excluía qualquer possibilidade de negociações futuras.

O país viveu um tempo imenso envolto na atmosfera malsã e deletéria que Sócrates, voluntária e consistentemente, criou. Uma atmosfera passional e “latino-americana”. Por isso, mesmo no meio de todas as dificuldades por que passamos, o Governo de Passos Coelho representou, e representa, um certo regresso à normalidade. Não temos de conviver diariamente com um universo paralelo transmitido pela televisão e pelos jornais. Passos Coelho não tem o costume de abrir a boca para desfiar a lista das múltiplas virtudes da sua pessoa, e sobretudo não fala como se quisesse assassinar. E se odeia alguém disfarça bem, como lhe compete e a democracia manda. Respira-se, de facto, melhor.

Voltar ao mundo de Sócrates seria um pesadelo inenarrável. Uma vez chegou, bastou, e até foi além disso. E tudo aquilo que manifeste vestígios, mesmo que ténues, daquela coisa deve ser vivamente repudiado. A América Latina tem muitos encantos, mas não é exactamente o estilo político que convém.