A verdade é que, quando fiz a trouxa para o mês e meio que iria passar fora de Lisboa, atendendo a várias actividades de formação, fui bastante exagerado na provisão de livros a ler. Para além de uma volumosa história de Cristóvão Colombo, o genovês, da autoria do historiador Luís Filipe F. R. Thomaz, com um delicioso subtítulo – Meu Tio por afinidade – ainda acrescentei um muito interessante estudo histórico-jurídico paterno sobre A Sucessão da Casa e Ducado de Aveiro, uma recente publicação da Editora 2020, Os judeus de Pio XII, de Johan Ickx, e um romance de Camilo Castelo Branco: mais de 1.500 páginas, no total!

Não obstante a abundante literatura trazida de casa, ao chegar ao Caramulo deparei-me com um clássico a que não consegui resistir: L’Étoile mystérieuse, de Hergé, em francês, numa primorosa edição Casterman! Sim, mais uma das muitas aventuras de Tintin, que deliciaram inúmeras gerações de jovens e menos jovens, dos 7 aos 77 anos.

A história resume-se em breves palavras: um meteorito incandescente, que ameaçava colidir com o nosso planeta, provocando a sua destruição, desintegra-se e um troço deste desconhecido minério cai no oceano polar ártico. Ao mesmo tempo que se organiza uma expedição científica internacional – em que não falta um português: “o Prof. Pedro João dos Santos, célebre físico da Universidade de Coimbra” – que se propõe resgatar esse estranho material, que pretende investigar, outra embarcação dirige-se para o local da queda, com o intuito de capturar esse mineral para fins perversos. Nesta luta entre o bem e o mal desenvolve-se a aventura que é, por esse motivo, especialmente aliciante e pedagógica, sobretudo para os mais novos, não fosse o protagonista uma espécie de jovem escuteiro empenhado em fazer boas acções!

Ante uma noite de verão extraordinariamente quente – na altura ainda não se falava de aquecimento global, nem de alterações climáticas! – Tintin apercebe-se de que a elevada temperatura, que até derrete o alcatrão, se deve à insólita proximidade de uma estrela misteriosa, que avança vertiginosamente em direcção à Terra. Apavorado com a ocorrência, dirige-se para o Observatório Astronómico, onde é confirmada a hipótese da destruição mundial. Felizmente, os cálculos astronómicos estavam errados e a fatal colisão não acontece. Contudo, na sua iminência, um tal Philippulus, o Profeta, percorre as ruas da cidade anunciando o fim do mundo e espalhando o terror. Tintin não cede à demagogia do falso profeta e, quando o ouve gritar, sob as janelas da sua casa, aproveita para lhe refrescar as ideias com a água de um jarro despejado, em cheio, na sua generosa careca.

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O divertido episódio fez-me lembrar que, também agora, não faltam profetas da desgraça: primeiro eram os que anunciavam o arrefecimento do planeta, depois foram os do aquecimento global, mais tarde optou-se por uma expressão menos comprometedora e mais abrangente – as alterações climáticas – mas sempre no mesmo tom alarmista que, felizmente, a ciência não só não confirma como desmente. Com certeza que a preocupação ambiental faz parte da Doutrina Social da Igreja, mas o sensacionalismo de alguns meios de comunicação social, que tão depressa falam de uma iminente catástrofe, como depois a esquecem – quem fala hoje do buraco do ozono?! – é injustificado e contraproducente: recorde-se a conhecida história de Pedro e o lobo.

As personagens das aventuras do Tintin não são ídolos, mas seres humanos cujas fragilidades são simpáticas. Hyppolyte Calys, o director do Observatório Astronómico, ao descobrir um novo metal, apressa-se a dar-lhe o seu nome, numa divertida alusão à vaidade a que também não são imunes os mais consagrados cientistas. O próprio Capitão Haddock, não obstante a sua bravura de velho lobo do mar, é uma figura contraditória: apesar de presidente da Liga dos Marinheiros Antialcoólicos, é um assíduo consumidor de bebidas espirituosas! Contudo, está longe de ser um hipócrita de refinada duplicidade: é, como todos nós somos também, uma boa pessoa, com defeitos que nem sempre consegue ultrapassar e, por isso, mais do que o desprezo que provocam os fariseus, merece a compaixão de que carecem os fracos.

Quando, depois de inúmeras peripécias, o L’Aurore está prestes a chegar ao local em que caiu o meteorito, para onde também se dirige, a todo o vapor, o Peary, o concorrente barco inimigo, uma mensagem de rádio chega ao Capitão Haddock: um navio, nas imediações, enviou um urgente pedido de socorro. Consternado, o capitão convoca os sábios que integram a expedição científica para os pôr a par da situação. Os cientistas são unânimes no seu parecer: o interesse científico deve ceder ante uma emergência humanitária e, por isso, o barco deve-se desviar da sua rota, para ir ao encontro da embarcação em perigo. Felizmente, Tintin descobre que era um falso SOS, lançado pelo Peary para que, desviando L’Aurore do seu rumo, chegasse primeiro à meta.

Quando se levanta um generalizado coro de impiedosos justiceiros laicos, que querem apedrejar a Igreja pelos crimes de pedofilia dos seus sacerdotes, mas nada fazem contra a chaga dos abusos de menores em tantos outros âmbitos da sociedade, é inevitável pensar que, também agora, os que mais invocam a moral são, muitas vezes, os que menos a praticam. E talvez não seja temerário pensar que também querem assim desviar a barca de Pedro do seu fim, que é a salvação das almas pela proclamação do Evangelho, que é verdade e vida. Nestes tempos de furiosa perseguição anticristã, são também necessários jornalistas isentos que denunciem essa hipocrisia.

Quando Tintin parte, no hidroavião, em direcção ao meteorito, o Milou começa a ladrar desalmadamente. O capitão tenta sossegá-lo, garantindo-lhe o regresso próximo do seu dono. Note-se: do dono! Não é o papá, nem a mamã, nem o cão tem nome de gente, nem ninguém lhe pega ao colo: é cão, tem nome de cão, tem trela e tem dono! Bons tempos aqueles, em que os cães eram cães, tinham nomes de cães e não de pessoas, tinham dono e não papás, nem mamãs, tinham trela e estavam bem cuidados, porque basta haver bom-senso para tratar bem os animais domésticos, que também são dons de Deus.

Uma das características do meteorito, a boiar no oceano ártico, é a forma acelerada como nele se desenvolvem todos os seres vivos. Tintin, ao ver que uma pequena aranha se transforma num bicho imenso, exclama, apavorado: “Senhor, que monstro!”. Uma oração? Talvez, ou então, simplesmente, uma interjeição, que expressa uma convicção universal: a de que, ante uma urgência, o ser humano sente a necessidade de apelar ao Criador. É curioso como o nome de Jesus Cristo é tão frequentemente invocado, nem sempre respeitosamente, nas grandes produções norte-americanas, que não primam pelos valores religiosos e morais. Mesmo que dito inconscientemente, esta referência recorda o cunho essencialmente cristão da civilização ocidental que, apesar de descristianizada em muitos dos seus actuais costumes, mantém ainda uma explícita referência a Cristo, a quem deve o que de melhor tem.

Quando as vagas oceânicas ameaçam submergir o aerólito, onde Tintin espera o hidroavião que o há-de resgatar, o repórter, arriscando a vida, retrocede, para deixar a bandeira da expedição científica sobre o seu cume. Idealismo? Decerto, mas essa é, precisamente, a principal missão dos heróis: a de nos recordar que vale bem a pena dar a vida por um ideal, que vale a pena correr riscos pela verdade, que vale a pena o patriotismo, que vale a pena lutar por um mundo mais justo. Mas a melhor aventura é, sem dúvida, a dos bem-aventurados que tudo deixaram, e perderam, pela glória de Deus e o amor dos irmãos.