Fragmentação. É a palavra escolhida pelo Banco Central Europeu (BCE) para se referir aos riscos de divergência nas taxas de juro na área do euro. O aumento das taxas de juro dos países mais endividados, como a Itália, pode provocar uma nova crise da dívida na área do euro. A fragmentação caracteriza também o mercado da energia da União Europeia (UE). As reduções e o elevado risco de corte no fornecimento de gás russo à Europa poderá resultar numa grave recessão económica. A quebra do PIB poderá atingir mais de 5% em países como a Hungria, a Eslováquia, a Chéquia ou a Itália. Os riscos de recessão na Alemanha são também muito elevados.
Num dos mais complexos contextos que a UE enfrentou na sua história, com uma guerra nas suas fronteiras e as ameaças de um autocrata com ambições imperialistas, a fragmentação da UE é um risco real.
Para garantir a eficácia da sua política monetária, o BCE anunciou um novo programa de compra de dívida pública, o Instrumento de Proteção da Transmissão (IPT), que visa impedir a divergência das taxas de juro na área do euro. Para se libertar da dependência da energia proveniente da Rússia, a UE lançou o Plano RepowerEU, que visa a poupança energética, a aceleração da transição para as energias renováveis e a diversificação dos fornecedores de energia.
Será que estes dois instrumentos vão conseguir evitar a fragmentação da UE?
As taxas de juro na área do euro estão a aumentar desde o início do ano. Este aumento tem sido acompanhado pela divergência entre as taxas de juro da Alemanha e dos países mais endividados: Itália, Grécia, Portugal, Espanha. Após o anúncio do aumento da taxa de juro de referência pelo BCE, na passada quinta-feira, a diferença da taxa de juro da dívida pública italiana a 10 anos em relação à alemã atingiu os 240 pontos. Esta divergência das taxas de juro pode pôr em risco a sustentabilidade da dívida pública e a estabilidade da área do euro e da UE.
Na última década, desde a liderança de Mário Draghi, o BCE tornou-se a mais importante instituição europeia, decisiva para a estabilidade da área do euro e da União Europeia. O protagonismo do BCE, através da implementação de programas de compra de dívida pública em larga escala, foi possível porque a inflação era claramente inferior ao objetivo de 2%.
No atual contexto, com as taxas de inflação a não mostrarem sinais de abrandamento (8,6% em junho, na área do euro), na passada quinta-feira, o BCE aumentou as suas taxas de juro de referência em 50 pontos base.
No mesmo dia, O BCE anunciou o novo instrumento de compra de dívida pública, o IPT. Para a ativação do novo instrumento os países têm de respeitar as regras orçamentais europeias, ter uma dívida pública sustentável, e cumprir os compromissos assumidos no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência.
O BCE assumiu a sua determinação em combater movimentos especulativos das taxas de juro, isto é, alterações que não sejam justificadas pela condição económica e financeira dos países. Dado que não é óbvio distinguir movimentos especulativos das taxas de juro de movimentos baseados em fundamentos económicos, esta abordagem pressupõe uma análise discricionária na compra de dívida dos países. Esta discricionariedade poderá pôr em causa a credibilidade do IPT junto dos investidores e, assim, a sua eficácia.
Qual a garantia de que o BCE reunirá o acordo dos estados-membros para estabilizar as taxas de juro de um país alvo do ataque de ‘especuladores’? Será que o BCE fará tudo o que for possível para estabilizar as taxas de juro de um país como a Itália?
A situação da Itália, agravada pela demissão do primeiro-ministro Mario Draghi, é uma bomba-relógio: uma dívida pública que corresponde a cerca de 150% do PIB e uma dependência do gás russo entre 25% e 40%. O corte no fornecimento de gás pela Rússia e uma recessão em Itália, num contexto inflacionista e de aumento das taxas de juro, pode tornar rapidamente a sua dívida pública insustentável.
A situação em Itália ilustra a ligação que existe entre os riscos de fragmentação nas taxas de juro da dívida da área do euro e a fragmentação no mercado energético.
Dos três elementos do plano RepowerEU, aquele que pode ser mais eficaz no curto prazo, é a poupança energética. A transição para as energias renováveis vai certamente acelerar, bem como a diversificação das fontes de abastecimento. Mas são duas mudanças que levarão vários anos a ser concluídas.
O que está em causa neste momento é evitar a disrupção no fornecimento de energia às famílias e empresas no caso, muito provável, do corte no abastecimento de gás pela Rússia. Assim, a adoção de medidas de poupança de energia é do mais elementar bom senso. Custa-me perceber como não foram ainda implementados programas de poupança de energia em Portugal.
Neste contexto, as declarações do Secretário de Estado do Ambiente e Energia, João Galamba, em relação à proposta de redução do consumo de gás em 15% foram despropositadas. É verdade que Portugal e Espanha são uma ilha energética, sem ligações relevantes à Europa Continental, o que justifica um tratamento especial (a CE propõe uma poupança de 5% em casos excecionais). Em vez de manifestar estridentemente uma posição de insensibilidade em relação à gravíssima crise energética europeia, o Governo devia aproveitar o atual contexto para acelerar a integração no mercado energético europeu, uma condição para o aproveitamento do potencial de Portugal nas energias renováveis.
Desde 2012, com Mario Draghi na crise das dívidas soberanas e com Christine Lagarde durante a pandemia Covid-19, o BCE mostrou estar à altura da ambição do projeto europeu. Em 2020, a CE esteve também à altura ao emitir dívida conjunta para financiar o PRR e na compra conjunta de vacinas. O sucesso de Portugal no processo de vacinação teria sido possível sem a compra de vacinas pela Comissão?
A crise que a UE tem pela frente é provavelmente a mais desafiante da sua história. Subsistindo falhas institucionais, como a incompletude da União Económica e Monetária e do mercado energético, a coesão entre os Estados membros será essencial. Essencial para permitir que o novo instrumento de compra de dívida seja eficaz a estabilizar as taxas de juro. E essencial para que o corte de gás pela Rússia não provoque uma grave recessão na Europa. E estas duas questões estão ligadas. Uma grave recessão na Europa nos próximos meses poderá tornar insustentável a dívida dos países mais endividados e a missão do BCE impossível.