Um funcionário decidiu este ano suprimir a entoação da letra do Rule Britannia (e do Land of Hope and Glory) na Last Night do Proms. Não sei se alguma vez viram o encerramento deste festival, com milhares de britânicos no Royal Albert Hall e no Hyde Park, e simultaneamente noutros lugares do Reino Unido, a entoarem, com muito coração e ainda mais cordas vocais, estes dois cânticos. Se não viram, vejam, porque é, para dizer o mínimo, impressionante. Ora, independentemente das idiossincrasias dos cidadãos e dos matizes das épocas — uns envoltos na Union Jack, outros noutros símbolos de união e/ou identidade a gosto, nem sempre coerentes entre si (também bandeiras da UE, nas mãos dos remainers) — há, apesar de tudo, uma união que se celebra de cada vez que o Rule Britannia é entoado desde há mais de 280 anos. Mas já lá vamos.

Voltemos ao banimento. Terá sido por causa do coronavírus? Não. Aparentemente o banimento deve-se ao facto dos cânticos não serem politicamente correctos e estarem pejados de marcas imperialistas.

Um pouco de história: o Rule Brittania foi ouvido em público, pela primeira vez, em 1740. É uma música patriótica e, como tal, sendo britânica e escrita no sec. XVIII, é necessariamente imperialista e bélica; ligeiramente imperialista e vagamente bélica, mas imperialista e bélica, concedo. Mas, quem nunca? Podemos por cá continuar a cantar “Às armas, às armas! / Sobre a terra, sobre o mar / Às armas, às armas! / Pela Pátria lutar”? Ou, em França, “Aux armes citoyens / Formez vos bataillons / Marchons, marchons / Qu’un sang impur / Abreuve nos sillons”?

O Rule Brittania, porém, mais do que aquilo de que é acusado, é sobretudo um cântico indómito de defesa da liberdade, esse património inalienável de tradição anglo-americana e marca britânica indelével. E eis, nisso, a união que promove entre os britânicos de todos os tempos; esses habitantes da Ilha, unidos contra todas as tiranias. Gosto, a este propósito, especialmente do início da 4ª estrofe: “Thee haughty tyrants ne’er shall tame (vós, tiranos arrogantes, nunca nos domarão)”, e, claro, do 2.º verso do refrão “Britons never will be slaves (os britânicos nunca serão escravos)”.

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Muitos perguntar-se-ão, se chegaram a este ponto, o que raio é que isso lhes interessa. E, de facto, a liberdade nunca foi coisa que entusiasmasse muitas almas por cá. Mas num tempo em que, até por cá, a terra dos brandos costumes, o governo sucumbe à litania do fascismo higiénico (ler o Luís Aguiar-Conraria no Expresso), oposições populistas exibem sem pudor propostas de cercos sanitários a etnias específicas, adoradores de Estaline, Mao e outros facínoras fazem na Atalaia o que mais ninguém pôde fazer em lado nenhum; neste tempo, dizia, talvez o combate às tiranias e a defesa da liberdade volte a ser o combate cultural urgente a travar.

Dito isto, e voltando ao Rule Britannia, de que é que esta gente verdadeiramente se envergonha? Até onde é que, contemporâneos, deixaremos ir esta ignominiosa cancel culture?

(Aqui, faço uma breve pausa para tomar chá, já que esta coisa de nos referirmos a esta abjecção como cultura não me faz nada bem à saúde.)

(Voltei.)

É do passado imperial? É, simplesmente, do passado?

Se é do passado imperial, vale a pena por exemplo, para começar, comparar o legado britânico com o lastro de desgraça que a presença francófona deixou no mundo – essa França política que fatidicamente as nossas elites se habituaram a bajular e cujo preço ainda pagamos. As ex-colónias britânicas são genericamente mais democratas, mais livres e mais desenvolvidas que as ex-colónias francesas, onde em regra sobrou o caos ou a tirania. Aliás, desde a Gloriosa Revolução (1688) o Reino Unido é uma democracia parlamentar estável; essa coisa tão estultamente pouco valorizada quando a temos, e tão chorada na clandestinidade quando dela somos privados. Já depois dessa alucinação colectiva chamada Revolução Francesa (1789), que só por falta de conhecimento ou excesso de loucura se continua a glorificar, a França conheceu duas monarquias, dois impérios, uma ditadura proto-fascista e cinco repúblicas. Aqui, permitam-me o aparte: este ímpeto para mudar radicalmente o regime – a nova ordem, as novas repúblicas, os homens novos, as novas direitas, as novas esquerdas, e por aí adiante sempre arrastando o cheiro a mofo – é um cancro de que as esquerdas e as direitas de inspiração continental nunca mais se livraram.

Já se é, simplesmente, vergonha do passado, então estamos perante outra forma de tirania: o absolutismo niilista do presente, que hoje se rebela contra qualquer espécie de tradição. E a esses convém lembrar que homens sem passado são homens sem futuro. E todo o conforto, indignações e futilidades twitadas a partir de dispositivos com baterias de lítio só são possíveis graças ao caminho percorrido até aqui por homens que hoje querem calar. Nestas coisas, enquanto não falta o pão na mesa, convinha mais humildade e menos estupidez.

O grande Nelson Rodrigues, numa crónica a que deu o nome de “O medo de parecer idiota”, falava com lástima sobre os copy desk, que, na sua época, invadiam as redacções dos jornais, e num ímpeto avassalador, de “lápis vermelho” na mão, corrigiam tudo o que lhes aparecia à frente. Lendo estas notícias, percebe-se que o medo desapareceu, e os idiotas, esses, estão aí, muito para além das redacções.

Agora vou ouvir o Rule Brittania enquanto posso. Porque aquele patriotismo também é meu; porque aquela pátria é a pátria dos homens livres.