O problema não é “mais austeridade”. Boa parte das medidas exigidas à Grécia nem sequer implicam mais sacrifícios – implicam, isso sim, acabar com o clientelismo e a fuga aos impostos. O problema é outro, é a Grécia ter sido transformada quase num protectorado. Mais: o problema é isso mostrar até que limites pode levar o colete-de-forças que é hoje o euro.
Para a Grécia, a actual situação não é novidade. Com o acordo de domingo, o país ficou obrigado a entregar activos no valor de 50 mil milhões de euros para serem vendidos por uma entidade sediada no Luxemburgo. O país ficou também obrigado a “cortes automáticos” sempre que não atingir as suas metas. E terá os fiscais das “instituições” ainda mais presentes do que estavam os fiscais da troika. Para sermos modestos, digamos que fica um país de soberania tutelada.
Não é a primeira vez que a Grécia se vê numa situação destas. No final do século XIX, em 1898, a Grécia também entrou em bancarrota por causa de mais uma guerra nos Balcãs e os credores criaram um “Comité Internacional para a Gestão da Dívida Grega” que não esteve com meias medidas: ocupou as alfândegas do Porto do Pireu e ficou com todas as receitas dos mais variados impostos, do tabaco ao sal, passando pelo imposto de selo e pelos combustíveis, de forma a garantir que a dívida ia sendo paga. O que agora vai ser feito é menos brutal mas, na essência, não é muito diferente.
Portugal, vale a pena recordar, também esteve à beira de passar por uma situação semelhante sensivelmente na mesma altura, por alturas da bancarrota de 1892. Também então nos foi proposto pelos credores ficarem com o rendimento das nossas alfândegas para garantirem os seus interesses. O chefe do Governo de então, José Dias Ferreira (curiosamente bisavô de Manuela Ferreira Leite), não aceitou essa solução por violar a soberania nacional. Isso não evitou, até agravou, a austeridade que veio a seguir, sendo que nas nossas cidades se chegou então a comer o pão mais caro da Europa.
Seria curioso fazer a história de como, nessa altura e agora, os caminhos de Portugal e da Grécia foram, ao mesmo tempo, paralelos e divergentes. Recordar, por exemplo, o retrato ácido de Eça de Queirós, em 1872, quando escreveu que “estamos num estado comparável, correlativo à Grécia: mesma pobreza, mesma indignidade política, mesmo abaixamento dos carácteres, mesma ladroagem pública, mesma agiotagem, mesma decadência de espírito, mesma administração grotesca de desleixo e de confusão”. Ou lembrar as vezes que discutimos, desta vez, se éramos ou não como a Grécia. Mas isso, neste momento, são contas de outro rosário. O que importa mesmo é perceber o que ninguém quer perceber: a Grécia optou pela soberania tutelada porque recusou a proposta de Schäuble de uma saída temporária da zona euro. Essa proposta, ao contrário do que gritam as almas indignadas, não era nem ofensiva, nem chantagista: era pelo contrário a proposta que melhor servia a Grécia. E a Europa. Era a proposta de um europeísta convicto, mas realista.
À distância de uma semana, raciocinemos com frieza. No documento que então esteve em cima da mesa dos ministros das Finanças havia duas alternativas. Uma, draconiana, impunha medidas duras à Grécia e criava mecanismos para garantir que os governos de Atenas as tomavam – a bem ou a mal. Foi a que foi adoptada. A outra, a avançada por Schäuble, dava à Grécia o que ela queria – uma reestruturação da dívida –, acrescentava a oferta de um auxílio humanitário e requeria a saída do país da zona euro, prevendo que ela podia ser temporária e realizada com apoio dos parceiros europeus.
O que não estava nesse documento, porque não podia estar, era a terceira alternativa, a que Tsipras queria: por um lado, aceitar que a Grécia não pagasse parte da sua dívida, por outro lado e ao mesmo tempo, emprestar-lhe ainda mais dinheiro e sem nenhum condicionalismo. Para uns isso é que seria “solidariedade europeia”. Para mim seria a quase imediata implosão do euro, pois não haveria forma de levar os contribuintes – tanto os dos países mais ricos como os dos mais pobres – a aceitar subsidiar a Grécia para que, em Atenas, um governo anti-capitalista se afastasse cada vez mais das regras e do consenso político demoliberal em que assenta a União Europeia. Isso seria masoquismo, não solidariedade.
Tsipras, confrontado com a inexistência prática desta terceira alternativa – algo que estava a ser dito a este governo grego há seis meses sem que este, teimosamente, quisesse ouvir –, optou por capitular. Aceitou, no fundo, regressar a uma situação semelhante à que o seu país viveu no final do século XIX, em que ficou reduzido à condição de protetorado. Pior: aceitou um acordo que só por milagre funcionará e no qual ninguém verdadeiramente acredita. Um Governo que vai fazer tudo ao contrário daquilo em que acredita só pode fazer tudo mal. Um povo que se sente ainda mais humilhado, nunca assumirá as reformas necessárias como coisa sua. O problema de fundo volta assim a ser empurrado com a barriga, todos sabendo que daqui por semanas ou meses estaremos de novo em reuniões de crise. Está escrito nas estrelas, é só uma questão de tempo.
Em contrapartida o que Schäuble propunha fazia sentido. Uma Grécia temporariamente fora do euro poderia, desvalorizando a sua nova moeda, tornar a sua economia mais competitiva. Também poderia reestruturar mais facilmente as suas dívidas, pois não teria de cumprir as regras dos tratados do euro. E teria, por fim, um estímulo forte para, por iniciativa e vontade próprias, fazer as reformas que lhe permitissem regressar ao clube da moeda única, se assim o desejasse e disso fosse capaz. Tudo isto acompanhado por um cheque para acorrer às emergências existentes.
Entre a humilhação sofrida e esta alternativa de escolher um caminho que só no início seria mais duro, mas um caminho mais dependente da minha vontade e das minhas decisões, eu não teria hesitado: teria feito como o nosso José Dias Ferreira em 1892 e recusado entregar as chaves do cofre aos credores.
Dir-se-á: mas essa hipótese não está nos tratados, estes não prevêem a saída de um país da zona euro. É verdade. Mas também muito do que estava nos tratados, nomeadamente o princípio de que nenhum país poderia beneficiar de um resgate, tem tido as interpretações “criativas” que a realidade tem vindo a impor. Esta seria mais uma.
Dir-se-á ainda: mas abrindo o precedente de um país sair da zona euro, a própria zona euro muda irremediavelmente de natureza. Na verdade isso já aconteceu, pois o simples facto de o Eurogrupo ter formalmente discutido essa proposta significa que na zona euro já todos estão preparados para a saída de um país-membro. Não é preciso concretizar o precedente, basta admiti-lo: desde domingo que sabemos, nós e os mercados, que a pertença à zona euro deixou de ser irreversível. Mesmo assim nenhum dos cataclismos que tantos previram se materializou, pelo contrário.
Eu sei que a figura encarquilhada de um velho político numa cadeira de rodas não é de molde a suscitar grandes simpatias, mas a verdade é que foi Schäuble quem, sábado e domingo, melhor defendeu os interesses da Grécia e também os do euro. A chanceler alemã, no entanto, preferiu contemporizar, talvez mais por razões geopolíticas do que por real convicção. Com isso não resolveu nada nem agradou a ninguém, apenas voltou a adiar uma solução real para um problema, o grego, que só tem sido tratado com meias-medidas tão irrealistas como inúteis.
Por tudo isso é que, se fosse grego, não me ficava: exigiria de volta as chaves do cofre e agradeceria a Schäuble. Protectorado é que não, pois esse é que é o mau precedente. O péssimo precedente. O que não devíamos tolerar na Europa. Mais: a escolha da cimeira de domingo mostra até que ponto, em nome da obsessão do euro e da quimera da “ever closer union”, a democracia é cada vez mais apenas uma melga que se enxota quando perturba os nossos altos desígnios. E teria sido ainda pior se os nossos grandes europeístas tivessem conseguido um acordo que, em vez de contrariar apenas o mandato do governo grego, contrariasse o mandato dos governos dos outros países todos. Apesar de tudo os políticos que estiveram em Bruxelas mostraram ter os pés mais próximos da terra do que o coro dos federalistas que lhes exigiam um cheque em branco.
Não posso discordar mais do Syriza e do que ele é politicamente, não posso criticar mais a incompetência e arrogância da dupla Tsipras-Varoufakis nestes últimos seis meses, mas também não posso deixar de respeitar o povo grego, por mais equivocadas que tenham sido as suas escolhas. Por isso tenho obrigação de repetir, contrariando o dickat de Bruxelas: querem ir por um caminho diferente? Façam favor. Mas façam-nos sem ilusões e assumindo as consequências. Era o que eu faria.
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