A Primeira República, como toda a gente deveria saber, manteve-se no poder a partir de 1910 clamando contra a “padralhada”, contra a “corja jesuítica” e contra os “poderes ocultos” atrás do altar. Vasco Pulido Valente explicou em inúmeros livros que as eleições daquela época “foram uma fraude vasta e descarada” e que, portanto, o regime não podia ter a sua legitimidade baseada no sufrágio — assentava, por isso, na “mais extrema violência estatal”. A verdade, que a nossa esquerda tentou esconder durante décadas e que ainda hoje desvaloriza, é que “as circunstâncias exigiram o terror desde o princípio” do regime — e um dos principais receptores desse terror foi a Igreja Católica. Os bispos eram expulsos das suas dioceses (incluindo, claro, o cardeal-patriarca de Lisboa) simplesmente por existirem e os padres eram presos por crimes tão hediondos como, por exemplo, o de tocarem os sinos das igrejas.

Como se sabe, a seguir ao terror do Partido Republicano Português veio, como reação, a ditadura do Estado Novo. Ou seja, a história não acabou bem. Mas serviu de lição. Muitos anos mais tarde, depois de outra revolução, um líder socialista mostrou saber que seria fatal repetir os erros dos republicanos. No livro-entrevista de Maria João Avillez, Mário Soares falou de forma cândida sobre os seus pensamentos e ações a seguir ao 25 de Abril: “Foi uma das minhas preocupações constantes: evitar a cisão entre a Igreja e o Estado ocorrida na Primeira República”. O secretário-geral do PS sabia que, se ocorresse uma “cisão” remotamente semelhante à de 1910, teria “consequências imprevisíveis e certamente indesejáveis”.

Por isso, ao contrário de alguns militares revolucionários durante o PREC, Mário Soares nunca traçou uma equivalência entre o “povo católico” e as “forças da reação”. Fez exatamente o contrário: procurou uma aliança com a hierarquia da Igreja. O líder socialista contou detalhes sobre as conversas “totalmente secretas” que manteve regularmente com o então cardeal patriarca, D. António Ribeiro, num lar de religiosas no Chiado: “Batia à porta, as religiosas sabiam que eu era esperado. Lá dentro, D. António Ribeiro aguardava a minha chegada. Conversávamos sobre a situação política, sobre o país. Eu pedia-lhe apoio, pedia-lhe que, através das diversas organizações religiosas, das missas, dos sermões, dos padres, a Igreja apelasse a que as pessoas estivessem presentes nas nossas manifestações. Tratou-se de um apoio vital. Por si só, os socialistas jamais poderiam ter tido centenas de milhares de pessoas mobilizadas nas ruas”.

A narrativa revolucionária tentou convencer-nos do contrário. Inúmeros relatórios feitos por militares do MFA queixavam-se da ação nefasta de sacerdotes que utilizariam os adros das igrejas para mobilizar a extrema-direita. E essas fantasias serviam como combustível para a propaganda anti-católica daqueles que queriam criar um “homem novo” e impedir que o sufrágio travasse o caminho para o socialismo.

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Como se vê lendo Soares, não foi bem assim — aliás, não foi nada assim. Mais: a estreita colaboração entre o líder do PS e a hierarquia católica tomou, por vezes, atalhos inesperados. Mário Soares revela que, num dos momentos mais perigosos do período revolucionário, preocupado com a confiabilidade de Costa Gomes, perguntou ao cardeal-patriarca se, de facto, o então Presidente da República era católico, “como se proclamava”. Solícito, D. António Ribeiro pôs Soares em contacto com o diretor espiritual do general: “Perguntei-lhe o que queria saber: se Costa Gomes era efetivamente católico. Deu-me uma resposta que me deixou perplexo: ‘É cumpridor do rito como ninguém, comporta-se comigo como um verdadeiro crente. Mas se o é ou não, só Deus o poderá saber!’”.

Mesmo depois do fim do processo revolucionário, Mário Soares manteve sempre a preocupação de cultivar boas relações com a Igreja. Mas, com o lento passar dos anos, pelos vistos, a esquerda portuguesa passou a entender que as cautelas do fundador do PS eram incompatíveis com as necessidades do progressismo e com as conveniências da tática política. A polémica desta semana sobre o livro “Identidade e Família” mostrou que o novo líder dos socialistas equivale, na sua cabeça, algumas opiniões do “povo católico” com aquilo a que muitos chamaram por estes dias “a extrema-direita reacionária”. É isso que uma pessoa é forçada a concluir quando o comentário de Pedro Nuno Santos sobre a apresentação do livro é o de que “é preocupante vermos Pedro Passos Coelho a assumir bandeiras que são do Chega”. Para o bem ou para o mal, várias daquelas pessoas que escreveram o livro já pensavam o que pensam hoje antes de André Ventura nascer para a política — algumas, antes mesmo de André Ventura nascer, ponto.

Convém ter em conta duas ou três coisas com alguma importância. A primeira é que o livro não é uma iniciativa da hierarquia da Igreja, mas é, inegavelmente, um produto de um certo pensamento católico, tendo em conta que inclui entre os seus colaboradores o antigo cardeal-patriarca de Lisboa, o atual bispo do Funchal, sacerdotes e leigos empenhados. A segunda é que não existe um ponto de vista único da Igreja sobre muitos dos temas que foram discutidos esta semana — nem, de resto, existe um único ponto de vista no próprio livro. A terceira é que nestes momentos surgem sempre cabeças exóticas, como aquelas que decidiram agora que a sua missão na Terra passa por devolver à pátria o conceito paleolítico de “dona de casa”.

Naturalmente, quando os autores daqueles textos decidem envolver-se no debate público têm de estar preparados para serem criticados, reprovados e condenados — especialmente quando a iniciativa de que aceitam fazer parte passa a ter como porta-vozes espíritos histriónicos que oscilam, tremulamente, entre a caricatura e a bizarria.

Mas, tudo somado, o mais relevante para o nosso regime não são as excentricidades pontuais dos deslumbrados pelos holofotes — é a posição e a reação das instituições com poder. E, esta semana, ao ouvir o homem que agora ocupa o lugar que já foi de Mário Soares e lidera um dos maiores partidos do país, tornou-se impossível não sentir no ar um cheirinho a 1910.