Atravessamos um momento ímpar na nossa história recente, atingidos que fomos por uma pandemia à escala global, que semeou doença e morte e que colocou uma pressão insustentável sobre o nosso sistema de saúde. Isto enquanto se nos impunham novos estilos de vida, mesmo de relacionamentos, e nos lançávamos numa crise económica sem precedentes e sem desfecho previsível.

Nenhum sistema de saúde estará alguma vez preparado para um tamanho desafio. Desafio em camas, em cuidados intensivos e equipamentos, mas certamente também em profissionais de saúde. Estes, consumidos numa guerra que parece não ter fim, juntando agora a escassez de número com o desgaste físico e psicológico, desgaste que também é de quem nos dirige, de quem nos governa e se consome na necessidade inventiva de respostas cada vez mais exigentes.

Face à escalada e ao pico de infeções – talvez evitável, não fosse o afrouxamento da guarda no período festivo -, o sistema de saúde debate-se com três problemas graves: a necessidade de resposta emergente à Covid-19; a incapacidade de resposta aos doentes não Covid-19; a dificuldade em sacrificar a essência política às necessidades emergentes de resposta assistencial.

A solução para o primeiro problema passa por apertar as medidas de confinamento e de distanciamento social, com base na ciência e sem conveniência política, bem como pelo reforço da capacidade do SNS, quer com mais meios, quer passando a mobilizar os serviços que até aqui não foram envolvidos na resposta à pandemia.

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A solução para o segundo problema passa pela resposta efetiva aos doentes não Covid-19. É sabido que houve um aumento de cerca de 13% na mortalidade global em Portugal relativamente a anos anteriores. Contudo, mais de 58% não tem qualquer relação com o novo vírus. Ou seja, estamos perante a ponta de um iceberg de diagnósticos tardios e de perdas de oportunidade terapêutica, que continuarão a incapacitar e a matar muito para lá da pandemia passar. Resulta esta mortalidade do receio de ir aos hospitais, mas também do decréscimo da resposta do SNS devido à pressão emergente da Covid-19. Esta é uma crise sem precedentes, que é pouco divulgada, mas muito sofrida por quem, não tendo voz, tem doenças tratáveis e vê o seu tratamento sucessivamente adiado.

A solução para o terceiro problema é a mais difícil e vem tolhendo a resposta emergente ao segundo problema: é a incapacidade política de encarar o sistema de saúde como um todo, integrando o público, o social e o privado, numa resposta harmónica às necessidades dos cidadãos. Resposta que permita tratar os doentes não Covid-19 onde haja essa capacidade, deixando o SNS focado na pandemia e nas respostas que o privado e o social não podem dar.

A solução para este terceiro problema permitiria que nos abríssemos a uma nova reforma da Saúde, mais inclusiva, mais eficaz nos meios e mais transparente nos custos. Um modelo que a Europa a que hoje presidimos há muito adotou para os seus cidadãos, dando à Saúde o que é da Saúde e à Política o que é da Política.

Se não o fizermos desde já, perdemos a oportunidade de abrir o pensamento a uma Reforma que a Saúde há tanto vem reclamando e que tanto, tanto, vem demorando.