No sábado à noite, Francisco Ramos, responsável pela vacinação Covid em Portugal, foi entrevistado pela SIC. Às tantas, o pivot perguntou-lhe: “Aqueles que receberam a primeira dose e que não são prioritários, vão receber a segunda dose e, se sim, quando?”
Respondeu Francisco Ramos: “Claro que sim. Não compete a esta estrutura, nem à estrutura da Saúde, infligir castigos nessa matéria. Aliás, deixe-me fazer um comentário, talvez desagradável, que esta pergunta mostra e explica um pouco o resultado daqueles 11 ou 12% das eleições presidenciais de passado Domingo, quer dizer, um espírito de facto vingativo, que não me parece que seja muito bom para uma sociedade que se pretende solidária como a nossa.”
Insistiu o jornalista: “O sotôr compreende que há muitas pessoas no país que considerarão que essa segunda toma é imoral?”
Reiterou Ramos: “Há pelo menos 500 mil pessoas, ou perto de 500 mil pessoas, que eu tenho a certeza que considerarão isso imoral. Acho que os outros portugueses, espero que tenham, digamos, o sentimento de solidariedade mais prevalente do que o sentimento, digamos, de uma justiça popular que provavelmente faz muito pouco sentido.”
Há quem tenha ficado indignado com esta resposta. Gente que considerou que Francisco Ramos estava a criticar os Portugueses que, revoltados com o abuso de poder, exigiriam uma punição exagerada para os prevaricadores.
Embora, à primeira vista, Ramos fale com a cagança de um moralista a passar um sermão ao povo ignaro, um São Francisco de Achismo, sinceramente não creio que aquilo tenha sido dito como crítica. Percebo o equívoco, ele é monocórdico, soa sempre a uma gravação de barulho branco. Mas parece-me que disse aquilo, não com censura, mas com alívio. Está aliviado por ver que os portugueses dirigem a sua fúria para quem tomou indevidamente a vacina, em vez de atacarem o responsável por organizar o protocolo que permite esta bandalheira. Neste caso, o protocólon: dali só tem saído cocó.
Não podemos dizer que fomos apanhados de surpresa. Desde os enganos na apresentação do plano, sem sequer conseguirem definir datas, passando pela confusão sobre os grupos prioritários (que não tinham idosos, passaram a ter por pressão da UE, não tinham políticos nenhuns, passaram a ter políticos a mais), era uma questão de tempo até chegarmos ao início da segunda fase sem que os Centros de Saúde tenham recebido indicações sobre quem vacinar. Pior, só se fosse organizado pela minha filha, que abomina vacinas.
O corolário, evidentemente, é a fartura de casos de vacinação indevida. São tantos, que não vou maçar o leitor com os links. Desde que comecei a escrever a crónica já foram noticiados mais três. Se o leitor é curioso – ou masoquista – pode pesquisar. O escândalo público levou a task force a vir fornecer orientações sobre listas de suplentes a quem destinar as doses que sobram. Aparentemente, foi mais um esquecimento de Francisco Ramos. Na realidade, deve ter sido de propósito. Sem uma instrução específica, sem regras bem definidas, o cacique local pode usar as vacinas como bem entender. O equívoco é chamar-se “sobras” às doses de vacina que têm sido utilizadas à má fila: aquilo não são “sobras”, são “comissões”.
Digo que deve ter sido de propósito, porque, ao contrário do que seria esperado, esta campanha de vacinação foi planificada como todas as outras. O habitual é as vacinas em Portugal serem dadas em crianças pequenas. As da Covid, apesar de destinadas a adultos, acabam por também serem tomadas por quem anda à mama.
Neste momento, há ansiedade entre os amigos e familiares de autarcas e administradores hospitalares, nervosos por saberem quando vão ser vacinados. Tudo a roer as cunhas.
Há quem acredite que, tomando uma vacina, fica autista. Estes abusadores passam à frente e tomam a vacina porque acreditam que nós é que somos autistas. Não reparamos. É a subtil diferença entre o movimento anti-vacinas e o movimento vacina-me antes.
O problema está a montante da vacinação. É a já identificada questão da falta de testagem. Lembram-se? “Testar, testar, testar!” É óbvio que ninguém testou Francisco Ramos antes de o pôr à frente disto. Bem sei que fez parte de vários Governos do PS e acumulou lugares de direcção em vários organismos públicos, mas era de esperar que tivesse habilitações que o redimissem disso tudo. Afinal, não. Este é só mais um tacho de um daqueles trens de cozinha com 36 peças. Se bem que, desta vez, isto nem é bem um tacho, deve ser mais um púcaro. Cheira-me que não lhe pagam por aí além. Daí Francisco Ramos se ver forçado a acumular com um biscate como comentador político na SIC. Biscate onde, aqui para nós, mantém o nível de competência que demonstra enquanto organizador da vacinação.
Aquela generalização sobre todas as pessoas com instintos vingativos serem eleitores do Chega, é um bocadinho básica. Como comentário eleitoral é pobre. Tantos gráficos do Pedro Magalhães e análises da Marina Costa Lobo onde se inspirar e sai-se com aquilo? Seria o mesmo que dizer que quem se borrifa nos abusos das vacinas e não pede satisfações aos responsáveis são eleitores do PS. Achar que todos os malvados são do Chega é como achar que todos os batoteiros são do PS. Francisco Ramos lá terá os seus dados.
Entretanto, à hora a que acabo de escrever, a última notícia sobre burla nas vacinas é a da Presidente da Câmara de Portimão, a socialista Isilda Gomes, que se vacinou à frente dos enfermeiros do hospital de campanha. Justifica-se por ser presidente, por inerência, da Proteção Civil local e também por ser voluntária na intermediação de videochamadas entre doentes e familiares – apesar de ainda não ter intermediado nenhuma. Além disso, como a própria adianta: “Tenho 69 anos, sou obesa e hipertensa.” Sabemos que a infracção é grave quando, para se desculpar, uma mulher admite que é gorda.
Suponhamos que a pandemia se exacerba e, num repente, limpa o sarampo aos portugueses não vacinados. Para repovoar o país só sobrarão doentes idosos e autarcas socialistas. Por um lado, gente que só sobrevive à custa de outros; por outro lado, velhinhos. Pobre Portugal. Pobres velhinhos.