Graça Freitas tinha razão: os pareceres técnicos não devem ser públicos. A informação disponibilizada é mais do que suficiente. Bastava a DGS dizer “vacine-se as crianças” e pronto, nós vacinávamos as crianças. Mas eu, com a minha mania das grandezas, fui casmurro. Quis saber mais. E não descansei enquanto não pus as mãos no relatório da Comissão Técnica da Vacinação contra a covid-19 (CTVC). Que erro, meu Deus. Porque é que abri o PDF? Que desastre. Foi como a cena em que abrem a Arca da Aliança, nos Salteadores da Arca Perdida. O Indiana Jones é que é esperto e fecha os olhos. Os nazis são incinerados, porque saltam lá de dentro avantesmas que não devem ser vistas pelo comum dos mortais. É a Ira do Senhor e análises técnicas produzidas por especialistas: convém não encarar. Devia ter ouvido Graça Freitas, que sabe sempre para onde as pessoas devem ou não olhar. Devia ter-me lembrado de quando ela disse que nos aviões não há perigo de contágio porque os passageiros só olham em frente.

Ainda por cima, não valia a pena ter-me dado ao trabalho. O relatório é impenetrável. Está escrito de uma forma que um leigo não consegue perceber, por mais que se esforce. Por exemplo, às tantas lê-se: «A CTVC solicitou parecer técnico a um grupo de especialistas em Pediatria e Saúde Infantil que considerou que “(…) Poderá ser prudente aguardar por mais evidência científica antes de ser tomada uma decisão final de vacinação universal deste grupo etário”». Como bronco semianalfabeto, depois de ler este excerto eu tenderia a concluir que, chamada a pronunciar-se sobre uma questão de Pediatria e Saúde Infantil, a CTVC solicitou parecer técnico a um grupo de especialistas em Pediatria e Saúde Infantil que considerou que poderá ser prudente aguardar por mais evidência científica antes de ser tomada uma decisão final de vacinação universal desse grupo etário. Que ingenuidade, seu burro! Só porque diz “prudente aguardar” isso quer dizer que é “prudente aguardar”? É óbvio que me faltam habilitações para entender as nuances destes documentos técnicos altamente complexos, redigidos nessa linguagem codificada, acessível apenas aos iniciados, que é o português. Felizmente, podemos sempre contar com o Presidente da República, o primeiro-ministro, o secretário Sales, a ministra Temido, a Dra. Freitas, o vice-almirante e tantos outros especialistas em exegese pediátrica para iluminarem o povo ignaro. Assim, onde um burro lê “prudente aguardar” e entende “prudente aguardar”, um destes sábios interpreta como “necessário avançar ontem”.

Sempre achei que a palavra “vacina” vem de vaca porque a primeira vacina era uma inoculação de varíola bovina, que imunizava o ser humano contra a varíola. Afinal, não. Em Portugal vem de vaca, mas no sentido de sorte. Vacinamos ao calhas e esperamos que corra bem, mesmo que os peritos em saúde infantil digam que é prudente aguardar. É uma fezada.

O que sucedeu é que António Costa já tinha encomendado as vacinas e só depois se lembrou de perguntar se seria boa ideia usá-las. Provavelmente, estavam com desconto e ele conseguiu um bom preço. Uma vez aconteceu o mesmo cá em casa, só que com iscas. A minha mulher apanhou uma promoção no talho e comprou 40 kg de fígado antes de perguntar se nós gostávamos. Estivemos um mês a comer vísceras. E ela ouviu os peritos antes de decidir:

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– Quem quer iscas com arroz de iscas e salada de iscas?
– Ninguém.
– Tantos! Sendo assim, para sobremesa há molotof de iscas.

Está visto que a razão para vacinar crianças não é médica. O objectivo parece ser poupá-las às regras de confinamento, que fazem com que tenham de ir dez dias para casa só por haver um caso positivo na sua turma. Neste momento, a minha filha está confinada porque um coleguinha tem Covid. Apesar de não se sentar ao seu lado na aula, apesar de todos estarem de máscara na aula, apesar de não brincar com ele no recreio. E agora está em isolamento porque há uma ínfima hipótese de ter um vírus e, dentro da infimidade, há uma ínfima hipótese de o transmitir a adultos vacinados, alguns três vezes. (Confesso que, se isso acontecesse, uma parte de mim ia ficar orgulhosa. Já vi a minha filha a praticar desportos com bola e tem péssima pontaria).

É evidente que concordo com a necessidade de não obrigarmos as crianças a ficaram em casa, sem aulas e sem amigos. Aliás, tenho uma sugestão para não sujeitar as crianças a estas regras estúpidas: acabar com estas regras estúpidas. Substituí-las por regras razoáveis. Por exemplo, quem está infectado vai para casa, quem não está fica na escola. Entretanto, aguardamos com prudência mais estudos sobre os efeitos da vacina nas crianças, para então decidir com mais dados sobre a segurança a longo prazo para uma mini-pessoa que ainda não está completamente desenvolvida. E não fazemos depender a vida normal dos mais novos de estarem ou não vacinados.

Até porque: “Countries’ strategies related to COVID-19 control should facilitate children’s participation in education and other aspects of social life, and minimize school closures, even without vaccinating children and adolescents. UNICEF and WHO have developed guidance on how to minimize transmission in schools and keep schools open, regardless of vaccination of school-aged children.” É a recomendação da Organização Mundial de Saúde, citada no parecer técnico da CTVC. Se calhar a CTVC e o Governo deviam ler as opiniões dos peritos que consultam.