Depois de 2021, o melhor que podemos dizer é que só conseguimos prever que o mundo em geral e Portugal em particular está imprevisível. Como vemos o futuro a olhar para o espelho retrovisor, na verdade temo-nos enganado bastante, as curvas têm sido muitas e inesperadas. São muitos os “cisnes negros”, eventos de baixa probabilidade que se tornam uma realidade. Vamos, por isso, fazer aqui previsões do que é improvável que aconteça, os cisnes negros de 2022.
- A pandemia dura ainda mais um ano e vamos viver novos confinamentos. É, neste momento, um evento de baixíssima probabilidade. Todas as análises que encontramos nos domínios da medicina e da ciência dizem-nos que a pandemia está a entrar na sua última fase, tornando-se numa endemia. Mas a probabilidade de surgirem novas variantes é ainda elevada, uma vez que boa parte da população do mundo não está vacinada. Basta olhar para o mapa de África para percebermos os riscos que corremos de novas variantes. Não foi aliás por acaso que a origem da Ómicron tenha sido a África do Sul. Nem que seja apenas por motivos egoístas, os países ricos deveriam estabelecer como prioridade a vacinação da parte da população no mundo que é mais pobre.
- O PSD ganha as eleições e o país passa a ser governado por uma maioria de direita. É improvável, mas já foi mais. Olhando para o agregador de sondagens que está a ser publicado pela Rádio Renascença, o PSD está com uma subida visível desde o início de Novembro e em tendência de alta desde Junho, mês em que atingiu o mínimo. O PS é o partido vencedor das eleições e a esquerda continua a ser maioritária, o que revela bem que um Governo do PSD depois de 30 de Janeiro é um evento de baixa probabilidade. No entanto, como vimos em Lisboa com a vitória improvável de Carlos Moedas, a imprevisibilidade parece ser a regra. As legislativas que vão marcar o mês de Janeiro prometem, por isso, ser bastante interessantes.
- A burocracia começa a diminuir em Portugal. A prioridade das prioridades do novo Governo que sair das eleições de 30 de Janeiro é a simplificação administrativa e fiscal, um regresso em força do Simplex, que parece ter caído no esquecimento. Este seria um verdadeiro “cisne negro” se levarmos em conta que nenhum partido tem esse tema na agenda, que nem parece preocupar as associações empresariais. Só quando falamos com pequenos e médios empresários, sem acesso ao poder, é que percebemos como seria importante – e contribuiria para aumentar a produtividade – se a relação com o Estado fosse mais simples, mais transparente e com menos regras.
- A justiça administrativa e fiscal consegue ser mais eficiente e os processos mediáticos avançam. Menos regras e mais simples e compreensíveis seria também um contributo para que a relação com o Estado fosse menos conflituosa. Não resolvia o problema da herança do passado. Para isso é preciso que um Governo defina como prioridade a resolução dos conflitos que se acumulam, alguns com pelo menos uma década, nos tribunais administrativos e fiscais. O facto de este problema se arrastar sem solução faz dele um “cisne negro”. Noutra frente, na justiça penal, é igualmente pouco previsível que os processos que envolvem o ex-primeiro-ministro José Sócrates e o ex-banqueiro Ricardo Salgado tenham um progresso que façam melhorar a percepção de justiça. Mas já que não se pode resolver o que vem no passado, o novo Parlamento poderia estabelecer como prioridade simplificar os processos, limitando bastante, por exemplo, as possibilidades de recurso. Muito pouco provável.
- As políticas orçamentais passam a ser mais estruturais e menos de cortes onde não se vê. A pandemia pode ter-nos iludido, pode ter criado a ideia de que alguns problemas são culpa do Covid. Mas não são. A estratégia usada para reduzir o défice público durante os últimos seis anos, tentando conciliar esse objectivo com a agenda do PCP e do BE, fez com que se cortasse na despesa de tudo o que não se via, de imediato. As empresas que pertencem ao Estado foram violentamente apertadas e, entre elas, os hospitais-empresa. Optou-se por distribuir sem qualquer preocupação de aumentar, ao mesmo tempo, a eficiência. Com a pandemia, o apoio às empresas e famílias foi de tal forma prudente que o sector público administrativo registou um excedente no terceiro trimestre de 2021, de acordo com dados do INE. Mas a despesa mais rígida, como os gastos com o pessoal e as prestações sociais, continuam a aumentar, um problema que já suscitou vários alertas do agora governador do Banco de Portugal Mário Centeno. Claro que ter um défice público mais pequeno ou até um excedente contribui para resolver um dos nossos mais graves problemas: a dívida pública. É uma estratégia possível, a de estabelecer como prioridade a redução da dívida sem cuidar de racionalizar a despesa. Se a dívida diminuir o suficiente para depois deixar subir a despesa, tudo corre bem. Mas se isso não acontecer, tudo corre mal. A melhor política, a que era menos arriscada e mais amiga do crescimento duradouro, era racionalizar a despesa. Mas fazer isso pode ter como custo perder eleições ou nunca as ganhar, especialmente quando temos quase um milhão de funcionários públicos e 3,6 milhões de pensionistas. Por isso é muito pouco provável que algum dia venhamos a ter um Estado que gasta de forma mais racional.
- O SNS consegue reinventar-se e atrair médicos e enfermeiros. Seria necessária uma autêntica revolução no modelo de gestão de médicos e enfermeiros, pagando mais, especialmente aos enfermeiros, mas principalmente dando-lhes condições para tratarem bem as pessoas. Como se tem andado a gastar dinheiro onde não se deve, para alimentar as mais diversas clientelas, um dos pilares do Estado Social vive os seus piores dias. E não, não é por causa da pandemia. Já estava em mau estado antes disso. E o facto de se ter concentrado a esmagadora maioria dos recursos de saúde no combate à pandemia, sem ter sequer o cuidado de perceber se pessoas qualificadas como médicos e enfermeiros eram necessários em algumas áreas, está já a deixar sequelas graves de saúde que vamos perceber melhor quando esta fase terminar. As condições em que trabalham os médicos e os enfermeiros no sector público fará com que cada vez mais fujam dele. Quando se vai aos hospitais percebe-se do que estamos a falar. Percebe-se bem o desespero dos médicos e dos enfermeiros. O que se passa no SNS é a face visível do que foi a falta de investimento nos últimos anos, a estratégia de redução do défice público. Fazer com que o SNS volte a ser um sítio onde vale a pena trabalhar vai ser difícil e, por isso, improvável.
- A inflação é pouco temporária e o BCE deixa de comprar dívida mais rapidamente. O mês de Dezembro já deu uma pista sobre o que pode acontecer. O BCE é neste momento o banco central deste lado do mundo que vai retirar os estímulos, via compra de dívida pública, de forma mais lenta, passo a passo como disse Christine Lagarde. Em Março acaba a compra líquida de dívida por parte do programa desenhado para a pandemia e embora o outro instrumento de compra de dívida aumente a sua intervenção, em termos globais os valores serão inferiores. Os efeitos nas cotações dos títulos de dívida pública já se fazem sentir, mesmo que ligeiramente. A taxa de juro a que nos financiamos, e especialmente a do Estado, depende desta presença do BCE – é ela que tem permitido reduzir a despesa com juros, uma poupança que pode estar a acabar. Neste momento a maior probabilidade está na manutenção das taxas de juro, esperando-se apenas uma subida em 2023. Mas se a inflação se revelar menos temporária do que o que tem sido defendido por Lagarde, a pressão para correr em vez de andar a passo pode ser impossível de resistir. É pouco provável, até porque ninguém quer gerar problemas financeiros em países como a Itália. Como disse, em entrevista ao Negócios, o ex-economista chefe do FMI e por nós conhecido no início da intervenção da troika em 2011, Poul Thomsen, a Zona Euro está a condicionar a sua política monetária à dívida dos países e os Estados Unidos ao mercado de capitais. Por isso podemos dizer que juros inesperadamente mais altos é um evento de baixa probabilidade.
Para o ano, nesta altura, será o momento de verificar quais os cisnes negros que aconteceram. Feliz 2022!