No meio de toda a expectativa gerada em torno do novo filme Silêncio de Martin Scorsese, vão surgindo questões, medos e inquietações: Pode um filme que narra a experiência de alguém que, aparentemente, renúncia à fé ensinar-nos alguma coisa sobre o que significa confiar em Deus? Pode esse filme ser aceite sem sobressalto?

A adaptação ao cinema do romance histórico de Shusako Endo retrata um período em que o Japão passava por um processo interno de unificação e centralização do Estado. Já depois de outros sinais que davam conta de um crescente mal-estar das autoridades japonesas face ao cristianismo, em 1614 é publicado um édito que proíbe o culto cristão e obriga à expulsão de padres e religiosos da Igreja Católica. No entanto, alguns permanecem na clandestinidade acompanhando comunidades cristãs que continuam a desenvolver-se. Este sucesso missionário é visto como contrário a interesses políticos e comerciais e como uma ameaça à unidade nacional que se procurava aprofundar. Mais do que a impiedade dos perseguidores, é a persistência cristã que acaba por explicar a crescente crueza da perseguição. Como explica o historiador João Oliveira e Costa.

Depois do édito de expulsão de 1614, o padre jesuíta Cristóvão Ferreira passou a viver na clandestinidade e foi assumindo cada vez maiores responsabilidades. Apresentado como um missionário de referência e tendo sido um modelo inspirador para muitos jovens jesuítas de quem foi formador, a notícia de que teria apostatado causa grande perplexidade na Europa. Vários missionários são enviados ao Japão tentando localizá-lo e desejando o seu regresso à fé cristã. Tanto o livro como o filme retratam esta perseverante busca.

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Vindos de Portugal, os padres jesuítas Sebastião Rodrigues e Francisco Garrpe são as personagens que Endo desenhou e Scorsese retomou para nos conduzir ao interior de uma luta. A luta da fé que atravessa estes homens à medida que se entranham nos sombrios montes e aldeias do Japão. Narrada partindo da perspetiva de Sebastião Rodrigues, a história confronta-nos com as escolhas difíceis da fé. Percorrendo os tortuosos labirintos do seu conflito interior, facilmente se suspendem palavras e juízos precipitados. Somos forçados a constatar que não estamos diante de um caminho triunfante e épico. Somos confrontados com a crueza de ter que decidir entre a morte lenta e dolorosa daqueles a que se foi enviado e o dizer que se nega Cristo. Nesse ponto de rutura, nada mais se é capaz de escutar que o silêncio de Deus.

No livro e no filme somos confrontados com a negação da fé. Lugar por onde passaram os discípulos dispersos pela paixão, a começar por Pedro. Talvez isso nos possa gerar sobressalto. Talvez isso nos possa fazer experimentar vacilantes, sem saber bem o que dizer. A fé também cresce nestas linhas curvas, nos pontos de rutura da nossa vida em que sabemos tão pouco, em que nos restam tão poucas certezas. Aí, talvez o nosso grito por Deus seja mais fundo e O possamos escutar ainda que não O consigamos ouvir de um modo límpido.

Mais além da história contada por Shusako Endo, os dados históricos apontam para o provável regresso à fé do padre Cristóvão Ferreira e para o seu martírio em resultado da tortura. Silêncio não é um livro fácil e o filme seguramente não o será. No entanto, entrar nas sombras mais profundas da fragilidade humana será sempre recordar que a última palavra é Deus. Ele não se cala para sempre.

Sacerdote jesuíta