Esta nova crise na Síria era previsível há muito tempo, não obstante as promessas da Rússia e da Turquia de resolverem este conflito por meios diplomáticos. Os interesses russos e turcos são muito divergentes, a situação no terreno é extremamente complicada e, a qualquer momento, pode sair de sob o controlo das partes do conflito.

Moscovo acusa Ancara de não cumprir o memorando russo-turco de 21 de Setembro de 2018, onde se fixava a manutenção do status-quo no que respeita à presença de tropas turcas na Síria, mas, ao mesmo tempo, a Turquia deveria retirar da região de Idlib todos os “grupos terroristas” da oposição ao regime de Bashar Assad até 15 de Outubro desse ano. Ambas as partes deveriam garantir o cessar de fogo.

“Deixámos absolutamente de estar satisfeitos depois de ver como a partir de Idlib começaram as acções ofensivas de guerrilheiros e grupos terroristas contra as Forças Armadas sírias e alvos militares russos. A nossa satisfação terminou aí”, afirmou Dmitri Peskov, porta-voz do Kremlin.

É de salientar que não existe unanimidade entre Ancara e Moscovo no que diz respeito à definição de “grupos terroristas”.

Ancara, pelo seu lado, considera que a Rússia deve travar as tropas de Bashar Assad, pois, caso contrário, dá início a uma operação militar contra elas. O número de baixas entre os militares turcos é cada vez maior, o que poderá apressar a ofensiva prometida por Erdogan.

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“Se o país com que conversamos não faz em Idlib o que é preciso fazer, nós mesmos o faremos. Por enquanto não vemos um resultado das conversações que nos satisfaça. Estamos prontos para uma operação própria em Idlib, é apenas uma questão de tempo”, ameaça o Presidente turco Erdogan.

Nesta situação de acusações mútuas, um qualquer incidente militar na região pode ter consequências imprevisíveis, tanto mais quando nem Erdogan, nem o Presidente russo, Vladimir Putin, querem fazer figura de fracos.

Putin não pode “perder a face” numa altura em que os russos se preparam para a votação de 22 de Abril, que irá consagrar as emendas propostas pelo Kremlin à Constituição do país. Além disso, o dirigente russo não pode fazer figura de fraco num momento em que organiza o 75º aniversário da vitória do Exército Soviético sobre o nazismo. Tudo está a ser preparado como demonstrações da pujança e do poderio da Rússia dirigida por Putin há mais de 20 anos, herdeira quase exclusiva da vitória na Segunda Guerra Mundial (1941-1945).

Quando o dirigente turco anunciou que se iria encontrar com Putin no próximo dia 5 de Março, o Kremlin veio desmentir essas palavras, frisando que o Presidente russo tem outros planos para esse dia.

Recep Erdogan, pelo seu lado, também não pode desiludir os círculos nacionalistas turcos, que têm constituído a sua principal base de apoio. E para conseguir maior força no diálogo com a Rússia, o Presidente da Turquia apela ao apoio da Aliança Atlântica.

Esperemos que não se trate de accionar o artigo quinto da NATO, que obriga os membros da Aliança a irem em ajuda de um dos seus membros caso seja atacado, até porque, pelo menos por enquanto, não está em causa a segurança do território da Turquia. Parece tratar-se mais de um pedido de apoio moral e de apoio da aviação de países membros da NATO no confronto com as tropas de Assad.

Erdogan tem uma forte “carta” na mão para obrigar os membros europeus da NATO a darem-lhe ouvidos. Cerca de novecentos mil sírios dirigem-se para a Turquia à procura de refúgio da guerra, juntando-se aos 3,5 milhões que já lá se encontram. Caso se sinta “encostado à parede”, o dirigente turco poderá provocar uma crise de refugiados na Europa nunca antes vista.

É de sublinhar que a Rússia não aceita refugiados sírios no seu território e o Kremlin sabe bem as consequências que uma crise desse tipo poderá ter para o futuro da União Europeia.

O Presidente francês Emmanuel Macro e a chanceler alemã Angela Merkel já se dispuseram a participar num encontro com a Rússia e a Turquia com vista a encontrar uma saída para esta crise, mas Moscovo tem vindo a recusar essa hipótese, defendendo que o Irão é que deve participar neste diálogo. Teerão, tal como Moscovo, está do lado do regime de Bashar Assad.

Entretanto, a crise humanitária continua a aumentar na Síria e um conflito, que alguns consideravam estar perto do fim após a intervenção militar da Rússia, está cada vez mais longe da sua resolução. E a tão apregoada aliança russo-turca parece não resistir a tão fortes embates.