Por muito que o que vou escrever desagrade aos leitores, parece-me que a verdade é esta: a população cubana está mais preocupada com a sua sobrevivência do que com a sua liberdade. Não há nada. Não há que comer, não há medicamentos, não há empregos, a eletricidade é intermitente e a pandemia é galopante. Daí que a frase mais repetida, e que se tornou símbolo destes protestos, seja “temos tanta fome que até comemos o medo”.
Mas convém fazer um pouco de história, e a que tenho hoje para oferecer é história oral, que ouvi dos mais diversos refugiados cubanos que partilharam comigo a cidade de Miami durante alguns anos. A amostra é absolutamente aleatória, portanto a legitimidade deste artigo é apenas a da etnografia não intencional. A única prova científica é que li e, principalmente, ouvi esta história vezes suficientes, de testemunhas que viveram aqueles tempos ou dos seus filhos e netos que as ouviram dezenas de vezes e me convenceram de que se trata de uma perspetiva fidedigna.
Cuba era um país aborrecido e pouco livre sob o governo de Fulgencio Batista. Daí que quando a rebelião tomou conta das universidades, nos anos 1950, a adesão popular tenha sido massiva. O jovem Fidel encarnava um espírito que tomou conta de muitos, abastados ou menos abastados. Cuba tornar-se-ia num exemplo revolucionário para a América Latina e o mundo e seria uma democracia onde poderia voltar a haver liberdade.
Segundo muitos, este sonho terá morrido quando Fidel Castro desceu as ruas de Havana num carro de combate com a cidade a aclamá-lo, depois de ter declarado que Cuba era livre. Há uma relato muito interessante desse momento, na voz de uma velho ativista, contado por Ana Menéndez, uma escritora américo-cubana que pode não ter grande valor literário, mas tem passado a sua carreira a tentar perceber o percurso singular e teimoso de Cuba e dos seus exilados (Loving Che, 2007).
Fidel deslumbrou-se. Tinha a ilha a seus pés. Era um herói incontestado e foi ali que decidiu que a democracia não lhe servia. Não por utopia, não por acreditar que o socialismo poderia ser o caminho para a prosperidade e a felicidade do povo cubano, mas porque quis ser o senhor incontestado de Havana. Usou o seu carisma e o seu lugar na resistência para assegurar a transição e o comunismo de matriz soviética foi a ideologia que melhor lhe serviu: era popular entre os países das periferias, cooptava o apoio generoso de Moscovo que, em troca, tinha acesso sem restrições à vizinhança dos Estados Unidos. E, não menos importante, permitia ao regime criar uma nova elite, com as suas próprias clientelas e legitimidade – a revolução, sempre tudo em nome da revolução – para afastar (em muitos casos um eufemismo) quem se lhe pusesse no caminho. O comunismo era popular nas universidades e entre revolucionários. Mas diz quem esteve próximo do processo que ali, em Cuba, aconteceu. Perguntei diversas vezes a quem esteve lá, viu e viveu, se aquilo podia ser verdade. Não houve ninguém que me dissesse que não.
Podem dizer-me: essa é a narrativa do exílio. Talvez seja, mas as narrativas são precisamente parte importantíssima da política. Sem elas não há “cola” entre os que se opõem ou são favoráveis a alguma coisa. É assim que os exilados em Miami que, ao contrário do que se diz, têm backgrounds socioeconómicos muito diversos, veem a história do seu país, a revolução em que participaram e que os traiu. E é assim que os novos exilados, que vêm chegando conforme podem, continuam a alimentar e reproduzir esta narrativa. Quantas vezes ouvi dos mais jovens, ainda nascidos e criados no país de Fidel: “Defendem o comunismo?… Passem um mês em Cuba e vão ver…” Faltava tudo há meia dúzia de anos. Agora falta tudo ainda mais.
Cuba seguiu um caminho duríssimo de ditadura e pobreza, que toda a gente conhece. Seguiu o caminho do comunismo vitimizado pelo opressor imperialista, bode expiatório de todos os males do regime (que devia ser, se a teoria estivesse certa, completamente autossuficiente e arredado das globalizações capitalistas). E hoje, volvidos quase trinta anos da última grande sublevação antirregime, e já com a ajuda das redes sociais para mobilização e exibição internacional da repressão policial, os cubanos voltam a querer comida na mesa e antibióticos para dar aos filhos. Foram para as ruas exigi-los e estão a ser reprimidos pela polícia e apoiantes do regime. E a ser acusados de cederem ao incitamento norte-americano. Os exilados tentam reagir, mas a posição do presidente norte-americano tem sido apenas retórica.
Temo que a vida lhes possa correr mal. Esta revolta lembra as Primaveras Árabes que acabaram em repressão, novas ditaduras ou guerras civis. Esta revolta lembra que há um líder da oposição na Venezuela, Juan Guaidó, e que quem continua a controlar a Venezuela é Nicolas Maduro. Poucas vezes as revoltas populares têm um desfecho efetivamente favorável à população e, quando têm, longos anos de ditadura levaram das pessoas o fôlego da liberdade.
Mas Cuba é um caso mais amargo que os outros. Porque não há quem entre nós não saiba quem é Fidel e o que fez. Porque muitos de nós viajámos para Cuba e vimos com os nossos próprios olhos a desolação daquele país. Porque há quem entre nós ainda defenda o regime, mesmo sabendo a infelicidade que causou e causa a milhões de pessoas. Porque, como diz James Bloodworth – vejam-lhe a biografia, porque é insuspeito – numa coluna da New Statesman, relatando a sua própria experiência pessoal, “enquanto os meus amigos cubanos estavam a conspirar para fugir das masmorras de Castro, companheiros de esquerda que viviam a milhares de quilómetros de distância comportavam-se como se Cuba fosse um paraíso tropical”. Bloodworth não hesita em afirmar que “os ocidentais não devem ter ilusões sobre a culpa do governo cubano na pobreza e falta de democracia no país”. E todos sabemos que é verdade. Mesmo quem nunca conviveu com exilados.