1 De repente, nas poucas horas de uma madrugada, acordámos dentro de uma nova realidade. A Europa está à beira de um caldeirão a arder e Portugal, cá no cantinho, está ainda escondido a tentar organizar-se. O eterno atraso que temos em relação aos nossos parceiros chega ao ponto de nem sequer nos conseguirmos organizar politicamente em tempo aceitável. Uma crise política que começou em meados de outubro está ainda por ultrapassar. O que os outros países resolvem num mês nós tardamos em resolver. Já lá vão seis meses e ainda não temos um governo empossado.
2 Menos mal que os resultados foram providenciais e a maioria absoluta que os portugueses deram ao PS trazem-nos, ao menos, um cenário político de estabilidade para enfrentar os tempos difíceis que se avizinham. Fomos bafejados pela sorte sem saber como nem porquê. Em tempo de guerra não se limpam armas e, independentemente da opinião que cada um tem sobre o Governo PS, é melhor ter à frente dos destinos do país um Primeiro-ministro experiente do que fazer a rodagem a um novo Primeiro-ministro. Era bom que a experiência de António Costa o inspirasse a pensar duas vezes antes de mudar os dois, igualmente experientes, ministros dos Negócios Estrangeiros e da Defesa. Na reorganização de pastas que se avizinha, não é boa ideia mudar os dois ministros que, até agora, deram prova da sua competência para o lugar. Substituir Santos Silva e Gomes Cravinho pode trazer-nos o azar de colocar dois erros de casting para duas pastas onde, agora mais do que nunca, se exige profissionalismo, sobriedade, experiência e competência.
3 Os quinze dias de guerra que já decorreram foram suficientes para que as consequências económicas (e o que estamos a ver é só o princípio) já tenham aterrado no nosso quotidiano como mais uma bomba, em cima dos escombros que sobraram de uma crise financeira, a que se juntou uma pandemia e agora isto. Apetece pensar que são azares a mais para um país só. São. Mas a sorte que se constrói em tempos de acalmia prepara-nos para quando chegam os azares. E a verdade qual é? Como sempre não nos preparámos no curto intervalo que mediou entre a saída da troika e a chegada da pandemia. A palavra de ordem que vigorou durante esses quatro anos foi desfazer as maldades da troika. Não aproveitámos a ocasião e agora, como sempre, estamos pior do que a maioria dos nossos parceiros europeus. E até já há quem, como Durão Barroso este fim de semana, fale no regresso da crise das dívidas que pode colocar Portugal outra vez debaixo de mira.
4 O aumento dos preços da gasolina, ao ritmo a que está a acontecer, torna inevitável a necessidade de apertarmos o cinto. Atrás da gasolina vêm todos os outros produtos, particularmente os bens de primeira necessidade. Uma das opções que teríamos era a de mais rapidamente fazermos a transição, há muito ambicionada, de deixar o carro em casa e passar a usar massivamente os transportes públicos. Seria a ocasião de usar a crise como oportunidade de mudança. É aqui que mais uma vez deparamos com um azar que poderíamos ter acautelado. Não há transportes suficientes para satisfazer a procura. Mais uma vez confiámos na sorte de que teríamos o tempo suficiente para ir fazendo o discurso climático sem dele tirar consequências e agora fomos apanhados com as calças na mão.
5 Enquanto tudo isto acontece, o sempre sortudo António Costa pode gabar-se de não ter perdido a sua estrelinha. Rui Rio, por incrível que pareça, continua a alumiar-lhe o caminho, deixando livre a autoestrada do poder para o Primeiro-ministro usar como lhe aprouver, na certeza de que não surgirá ninguém para o incomodar (agora já nem o PCP nem o BE). É certo que os astros não têm ajudado no que diz respeito às conjunturas que tem tido que enfrentar: primeiro uma pandemia, agora uma guerra. Mas acho que nenhum Primeiro-ministro europeu se sentirá tão à vontade para tomar decisões difíceis como António Costa. Ele é o único homem para quem os portugueses podem olhar neste momento da aflição. No PSD, o programa está por agora interrompido e o espetáculo só recomeça sabe-se lá quando.