1O anti-herói
A figura do anti-herói ocupa um lugar central na literatura e no cinema e a sua análise é um tópico de estudo clássico na tentativa de compreender o fascínio que exerce sobre nós: porque parecemos incapazes de resistir às personagens que se apresentam como moralmente ambíguas? Serão essas personagens as mais verdadeiras, permitindo-nos conjeturar os nossos próprios limites morais? Seria eu capaz de fazer isto? Que decisão tomaria nas mesmas circunstâncias? Quão distante estou desta figura?
Não admira então que o anti-herói esteja presente em todo o cânone cultural, desde Homero – não é Ulisses, o dos mil ardis, o anti-herói por excelência? – até Shakespeare, de Humbert Humbert, de Nobokov, às muitas personagens de Clint Eastwood. E quem consegue resistir ao fascínio por Walter White, o humilde professor do secundário que parece empurrado pelas circunstâncias para uma vida moralmente dúbia?
O anti-herói prende a audiência, mas a estratégia pode não ser tão útil quando se dá aulas de filosofia. Com raríssimas exceções – como Jean-Jacques Rousseau, que teve uma vida interessante e uma alma atormentada, ou John Stuart Mill, que teve uma vida intensa e uma alma sofrida –, a maioria dos filósofos teve vidas insípidas. A única aspiração realista é arrancar um sorriso aos alunos com a ideia de que os relógios de Konigsberg eram acertados pelas rígidas rotinas de Immanuel Kant. Não é, por isso, surpreendente que, de todos os pensadores que refiro nas aulas, a única figura que gera realmente fascínio seja a de um não-filósofo: Ted Kaczynski.
Mais conhecido como Unabomber, a vida de Ted Kaczynksi é absolutamente invulgar: nascido em 1942 no seio de uma família de classe média, Ted destacou-se na escola pelo seu elevado QI, tendo saltado dois anos escolares até entrar na Universidade de Harvard com 16 anos. Como muitas vezes acontece, esta excelência intelectual era acompanhada por capacidades sociais mínimas, que se agravaram numa universidade de elite, em que a maioria dos colegas provinha de meios sociais muito distintos. Para além disso, Ted foi sujeito a uma das experiências de Henry A. Murray, um polémico investigador no domínio da psicologia, que terá perturbado ainda mais a frágil condição do jovem. Ted doutorou-se em matemática pela Universidade de Michigan e é contratado pela Universidade da Califórnia, onde lecionou durante dois anos. Mas o seu desconforto com o mundo moderno, em especial com o crescente desenvolvimento tecnológico, era já profundo, pelo que acabou por desistir dessa posição, mudando-se, mais tarde, para uma zona isolada de floresta em Montana, onde construiu, com o seu único irmão, uma pequena casa de madeira, na qual viveu sozinho durante praticamente vinte anos.
O objetivo de Ted era claro: queria viver longe do mundo civilizado e em máximo contacto com a natureza, pois apenas estas condições garantiriam que ele mantinha autonomia e independência. Mas o seu objetivo tornou-se mais difícil com o barulho de máquinas e aviões que o ia cercando, pelo que a sua raiva contra o mundo moderno foi aumentando até tomar uma decisão definitiva: a de adotar medidas de protesto concretas contra o sistema tecnológico sem renunciar à violência. De 1978 a 1995 enviou vários explosivos para alvos específicos (universidades e laboratórios de investigação, companhias de avião e lojas de informática), matando três pessoas e ferindo diretamente mais de vinte.
A investigação dos seus crimes foi a mais longa e a mais cara realizada pelo FBI até então, mas não gerava frutos: os inspetores continuavam sem uma pista daquele que designavam como Unabomber. O cenário só se alteraria em 1995, quando Ted enviou para o The New York Times e o Washington Post um texto de 35 mil palavras, comprometendo-se a não matar mais ninguém caso os jornais publicassem o seu manifesto. Com o acordo do FBI, os jornais fizeram-no, esperando que isso pudesse levar a pistas definitivas sobre a sua identidade.
Esta hipótese revelou-se acertada: Linda, a mulher do irmão de Ted, leu o manifesto e percebeu de quem se tratava. Convenceu David Kaczynski a denunciar o irmão e Ted foi detido no dia 3 de abril de 1996. Dentro da pequena construção de madeira onde vivia, os inspetores encontraram material mais do que suficiente para o ligarem ao Unabomber e Ted, depois de várias peripécias judiciais, acabou por se declarar culpado pelos crimes de que era acusado, passando a cumprir pena de prisão num estabelecimento de alta segurança.
Há muita literatura sobre as razões que nos levam a ser seduzidos por notícias sobre crimes (não é a CMTV um sucesso?) ou sobre os acontecimentos históricos mais horrendos (não são os livros e filmes sobre o nacional-socialismo uma contínua fonte de atração?), mas pode não ser tão evidente a razão que torna Ted uma boa fonte de discussão filosófica. As razões, na verdade, são muitas.
Ted justificou sempre as suas ações violentas como necessárias e legítimas para fazer ouvir a sua voz: se poucas pessoas têm acesso ao espaço público, como poderia ele dar a conhecer aos outros a Verdade sobre os perigos da sociedade tecnológica? Primeira pergunta: é legítimo considerar que os fins justificam os meios? (Se estão curiosos, posso dizer-vos que na plateia a opinião geralmente se divide.)
O irmão de Ted afirma que, mal leu as primeiras páginas do manifesto, sentiu o chão fugir-lhe dos pés, mas demorou vários meses a tomar a decisão de falar com o FBI. Apesar de sentir que era a coisa certa a fazer, custava-lhe denunciar o irmão e correr o risco de que ele fosse ferido ou morto. Segunda pergunta: o que fariam na posição de David? (Estão curiosos? A maioria dos alunos, independentemente do ano e do curso, diz que não denunciaria o irmão.)
Olhemos agora para o primeiro parágrafo do Manifesto:
“A Revolução Industrial e as suas consequências foram um desastre para a espécie humana. Apesar de terem aumentado muito a esperança de vida dos que vivem nos países “avançados”, desestabilizaram a sociedade, tornaram a vida insatisfatória, sujeitaram os seres humanos a indignidades, levaram a um sofrimento psicológico generalizado (no Terceiro Mundo também a sofrimento físico) e infligiram danos severos ao mundo natural. O desenvolvimento contínuo da tecnologia vai piorar a situação. Sujeitará certamente os seres humanos a maiores indignidades e infligirá maiores danos ao mundo natural, conduzirá provavelmente a maiores perturbações sociais e a maior sofrimento psicológico, e poderá levar a um aumento do sofrimento físico, mesmo nos países “avançados”.”
Terceira pergunta: tem Ted Kaczynski razão?
2As ideias de Kaczynski
Em artigo de 2018, o jornalista John H. Richardson designou como “Kaczynski Moments” (momentos Kaczynski) aqueles em que somos tomados pelo desconforto de concordar com as ideias de um terrorista. Essas ideias podem ser encontradas nos dois livros que Ted publicou desde que foi preso: o primeiro foi inicialmente publicado em 2008, sob o título Road to Revolution, mas foi republicado em 2010 com novo título: Technological Slavery: The collected writings of Theodore J. Kaczynski; o segundo é de 2016 e tem como título Anti-Tech Revolution: why and how. Mas o texto basilar continua a ser o Manifesto, considerado por muitos como profético (está incluído no primeiro dos livros referidos e foi traduzido para português pelas Edições Libertária).
Nele, Ted Kaczysnki considera que a sociedade industrial, com o seu desenvolvimento tecnológico, constitui a causa do sofrimento psicológico e dos danos ambientais que afetam as sociedades atuais. Mas o seu argumento mais relevante é desenvolvido com a ideia de que a tecnologia atenta contra a nossa dignidade por limitar a nossa capacidade de viver de forma autónoma. Não se trata aqui de um conceito metafísico de liberdade: Kaczynski apoia o seu argumento numa análise psicológica, defendendo que a satisfação com a vida decorre de um processo de poder, que passa pela determinação de um objetivo, pelo esforço dirigido para atingir esse objetivo e pela realização desse objetivo. A maioria das pessoas só se sente realizada quando esse processo é realizado de forma autónoma: é isso que nos faz sentir autoestima e auto-confiança. O problema da tecnologia é que, tornando-nos meras peças na engrenagem de uma grande máquina, nos retira autonomia e a possibilidade de satisfazer esse processo de poder. As consequências são todo o tipo de desordens apontadas aos nossos tempos: sentimentos de aborrecimento, inferioridade, baixa autoestima, ansiedade, depressão, culpa, frustração, hostilidade, etc.
Muitas páginas do manifesto são, então, dedicadas ao modo como o nosso intelecto funciona e de como a tecnologia o afeta, com considerações que hoje designaríamos de psicologia evolutiva: “Atribuímos os problemas sociais e psicológicos da vida moderna ao facto de a sociedade exigir que as pessoas vivam sob condições radicalmente diferentes daquelas para as quais a nossa espécie evoluiu”. E, de facto, os estudos mais recentes sobre o impacto da tecnologia têm reforçado esta hipótese: os nossos corpos não estão adaptados para o mundo digital que criamos.
Devemos reconhecer que o desconforto de Ted com a vida moderna não é uma novidade: pensemos em Rousseau, com as suas críticas ao mundo civilizado, ou em Henry David Thoreau, com as suas reflexões sobre o retiro na natureza. Mas as conclusões de Kaczynski são particulares: considerando que “não é possível reformar ou modificar o sistema por forma a evitar que ele prive as pessoas de dignidade e autonomia”, a solução só pode ser a da “revolução contra o sistema industrial”. E Kaczynski não está a falar de uma revolução política: a sua proposta é a destruição material do sistema económico e tecnológico e o regresso às condições de vida anteriores à revolução industrial.
3A atualidade de Kaczynski
Ainda que muitos possam concordar com o diagnóstico feito por Kaczynski (e o manifesto foi extremamente bem recebido em 1995), poderíamos pensar que a sua proposta é demasiado exigente para ser levada a sério. Quem é que estaria realmente disponível para viver num mundo sem o conforto material a que estamos habituados, desde casas de banho a frigoríficos?
Contudo, as ideias de Ted mantêm uma popularidade anormal. Provam-no os inúmeros documentários e artigos sobre ele e o sucesso de séries, como Manhunt ou Unabomber: in his own words, e de podcasts, como American Scandal: The Unabomber ou Project Unabom, que continuam a revisitar não só a sua história, mas sobretudo as suas ideias.
O jornal universitário The Harvard Crimson lançou em abril deste ano um podcast que procura refletir sobre a possibilidade de separar ações inaceitáveis de ideias que continuam a atrair, em especial os mais jovens. Parte da razão para essa atração estará no crescimento das preocupações ambientais, que encontram no Manifesto um diagnóstico e uma solução. Os jornalistas que acompanham os movimentos que se designam geralmente como “anti-civ” (anti-civilização) notam um aumento na adesão a estas ideias, muito impulsionadas, curiosamente, pelas ferramentas digitais, como o Reddit, o Facebook ou o Discord.
Por outro lado, o facto de estarmos hoje mergulhados numa sociedade muito sensível aos problemas mentais faz com que consideremos com maior razoabilidade as hipóteses levantadas por Kaczynski. E também os desenvolvimentos mais recentes ao nível da inteligência artificial têm provocado admiração, mas sobretudo medo: não teremos ido longe de mais?
Por fim, parte importante da razão parece prender-se com o fascínio pelo anti-herói: queremos compreender como é que uma pessoa tão inteligente se transformou em alguém disposto a sacrificar outros seres humanos em nome de uma ideia, sentindo-se legitimado a exercer violência em nome dessa ideia. E, nessa medida, a história de Kaczynski é muito útil para a atualidade: embora não se possa saber exatamente o que aconteceu dentro da sua cabeça, não há muitas dúvidas de que o facto de ter vivido praticamente isolado durante tanto tempo ampliou o seu desconforto com a realidade e o desejo de modificar, a qualquer preço, o mundo em que vivia. Ora, isto não é muito diferente do que acontece com as muitas pessoas que vivem hoje isoladas nas suas bolhas sociais (digitais), falando apenas com quem pensa de forma semelhante e alimentando a ideia de que o mundo está errado e deve ser modificado, a qualquer preço. Porque elas, como acontecia com Ted, nunca estão erradas.
No dia 10 de junho, Ted Kaczynski (Unabomber) foi encontrado morto na sua cela, ao que tudo indica por ter cometido suicídio, mas as suas ações e ideias continuarão a estimular as nossas reflexões.
PS: Apesar de se tratar de um texto anti-tecnologia, uma das palavras mais usadas por Ted Kaczynski no seu manifesto é “leftism” (esquerdismo), que ele considera não em termos ideológicos ou políticos, mas como um tipo psicológico específico (usando-o como um exemplo dos problemas psicológicos dos nossos tempos). A análise de Kaczynski é particularmente perspicaz quanto a este aspeto, mas terá de ficar para outro texto.