Findado há muito o período do confinamento obrigatório, impõe-se agora uma reflexão sobre o futuro do teletrabalho. Uma reflexão sem a pressão da urgência que foi necessária por alturas da sua adoção em massa, de forma a compreender de que forma este pode continuar a contribuir para uma maior conciliação entre a vida profissional e pessoal dos colaboradores, mas sem colocar em causa a cultura de equipa, a aprendizagem de práticas coletivas e o trabalho criativo – tudo atividades que requerem proximidade, interação e socialização.

Somos “animais sociais”, já dizia Aristóteles. Aprendemos, criamos, resolvemos problemas e evoluímos com a ajuda dos outros e através dos nossos diferentes sentidos e perceções com o ambiente físico que nos rodeia. Nesta linha de pensamento, aponto cinco dos mais prementes desafios que o teletrabalho coloca atualmente às organizações, aos trabalhadores e à sociedade em geral:

  1. Comunicação e coordenação omnicanal das equipas: Bastaram alguns meses de COVID-19 para aprendermos a fazer quase tudo online: liderar equipas, agendar reuniões ou desenvolver competências. Mas as mensagens começaram a multiplicar-se nos diferentes canais, normalizaram-se as inúmeras (e fatigantes) videochamadas, e os chats sem entoação nem indicações não-verbais colocam à prova a nossa capacidade de adivinhação e de lidar com mal-entendidos. Sem esquecer os novos desafios de cibersegurança associados (VPN, firewall, antivírus, Wi-Fi públicos, dispositivos pessoais). Em resumo: todos incrementámos os nossos conhecimentos digitais, mas a comunicação e a coordenação que antes eram cara a cara, simples e com feedback imediato, tornaram-se agora distantes, confusas, por vezes excessivas ou redundantes (com direito à desconexão e tudo) e, muitas das vezes, também ineficazes.
  2. Novas ameaças à produtividade: A produtividade e a concentração podem, em alguns casos, ressentir-se por open spaces, conversas telefónicas cruzadas e reuniões online realizadas pelos colegas do lado. Porém, as alternativas fora do escritório têm-se revelado igualmente (ou até mais) desfavoráveis – quando não existe um espaço de trabalho adequado (divisão própria, luz natural, ergonomia), quando surgem solicitações de atenção e cuidados por parte de outros familiares e/ou animais de estimação por perto, quando outros ruídos incomodam igualmente (campainhas, trânsito, obras) e quando as tarefas domésticas se tornam foco de tentação ou distração constantes.
  3. Inclusão, mas não para todos: O teletrabalho promoveu a contratação sem fronteiras, permitiu às famílias ganharem mais tempo com os seus e ajudou pessoas com incapacidades e/ou condicionantes médicas a trabalharem com mais qualidade de vida. Mas é preciso lembrar que aumentou também o fosso e a desigualdade de oportunidades entre os profissionais que podem decidir não sair de casa para ir trabalhar e aqueles que nunca tiveram sequer essa hipótese (na saúde, em supermercados, na recolha de lixo, etc.). A discriminação acentua-se se tivermos em conta conclusões como a da Society for Human Resource Management, segundo a qual 70% dos gestores consideram que os trabalhadores à distância são “mais facilmente substituíveis” do que os presenciais.
  4. Sustentabilidade colocada à prova: O teletrabalho reduz deslocações, trazendo poupança em combustível, estacionamento e manutenção de veículos, sendo visto para muitos como “mais amigo do ambiente”. Mas que dizer dos restantes custos e consumos energéticos que acabam por ser multiplicados (luz, gás, eletricidade, ar condicionado) por termos pessoas a trabalhar simultaneamente no escritório e em cada uma das suas casas? E quando o local de trabalho não é em casa e se mantêm as deslocações para um cowork ou cibercafé? E os custos ocultos de trabalhar a partir de casa de que fala o National Bureau of Economic Research e que passam por remodelações, decoração, troca de apartamentos com mais espaço ou diferente configuração?
  5. Saúde e bem-estar: Se, por um lado, o teletrabalho pode permitir uma melhor gestão do nosso tempo, por outro pode também trazer associadas algumas desvantagens. Estudos como o da Organização Mundial da Saúde mostram que o teletrabalho tem aumentado os níveis de isolamento social, depressão, sedentarismo, obesidade (causada pela excessiva comodidade proporcionada pelos serviços de delivery, por exemplo), consumo de álcool ou tabagismo. A título de curiosidade, o motor de buscas Google atingiu recentemente o maior pico de sempre de pesquisas por “dor nas costas” e, relacionado a este fenómeno, parece estar o teletrabalho passado por muitos em cadeiras de cozinha, sofás e outros equipamentos prejudiciais a uma boa postura corporal.

Como CEO de uma organização tecnológica, reconheço o teletrabalho como parte de um processo de transição digital intensivo e global, que permitiu responder às mutações económico-sociais de forma ágil, digital e sem precedentes. E claro que faço parte dos líderes que querem continuar a contar com colaboradores motivados e felizes, dotando-os da flexibilidade e autonomia que os novos modelos de trabalho permitem.

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Mas considero que precisamos também de networking, da serendipidade que nasce dos encontros casuais entre departamentos ou das conversas de corredor que não existem no virtual. Precisamos de brainstormings, de momentos de aprendizagem informais e por osmose, de mentoria, de interação, de emoção e celebração com gargalhadas, abraços e outros ingredientes que não podem simplesmente transformar-se em e-mails ou print screens, deitando por terra tudo aquilo que nos torna, mais do que profissionais, humanos.

Penso que o desafio deste debate está em encontrar o equilíbrio no qual o ‘tele’ não coloque em causa o ‘trabalho’. No qual a distância não se sobreponha à presença. E no qual a tecnologia seja um facilitador e nunca um substituto da nossa humanidade.

Cristina Marinhas, CEO da Quidgest. Cristina Marinhas licenciou-se em Economia no então Instituto Superior de Economia (atual ISEG). Apaixonada pelo potencial das novas tecnologias e pela ideia de que todos (dentro e fora das TI) podem contribuir para a transformação digital, é uma das fundadoras e atual CEO da Quidgest. Criada em 1988 e pioneira na área da Inteligência Artificial aplicada ao desenvolvimento de software de gestão (através da plataforma de extreme low code Genio), a Quidgest trabalha com centenas de parceiros e grandes clientes, incluindo governos, empresas multinacionais e instituições multilaterais de todo o mundo.

O Observador associa-se à comunidade Portuguese Women in Tech para dar voz às mulheres que compõem o ecossistema tecnológico português. O artigo representa a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da comunidade.