Até onde estão dispostos a sacrificarem-se os cidadãos da União Europeia e dos Estados Unidos para apoiarem o povo ucraniano? Será a resposta a esta questão que ditará, em grande medida, a actuação dos governantes, excepção feita, obviamente, para o cenário extremo de a NATO se envolver. Quanto mais solidários formos, mais as sanções têm de afectar o sector da energia, e maior será a crise nos países europeus, com ainda mais inflação e quebra na produção. Maior será o efeito nas nossas vidas confortáveis.
Os apelos agora renovados para que se cortem as compras de gás e carvão à Rússia, que chegam do presidente Emmanuel Macron, colocam a Alemanha numa situação insuportável. Serão os alemães, e com mais gravidade ainda os austríacos, a pagarem a mais elevada factura de condenação da Rússia e de apoio à Ucrânia. Berlim e Viena anunciaram já planos de emergência. No caso da Alemanha, se a política de poupança não funcionar, o plano é passar pelo racionamento dos fornecimentos de gás às empresas. Um cenário que, alertam os economistas alemães citados pelo Financial Times, pode conduzir a uma inflação de dois dígitos e a uma recessão. Em Março, a taxa de inflação estimada para a Alemanha já foi de 7,6%. Uma recessão na Alemanha arrastará inevitavelmente os outros países europeus, incluindo Portugal, para uma quebra da produção, a segunda em menos de dois anos.
Temos de estar disponíveis para enfrentar uma crise se quisermos, de facto, apoiar a Ucrânia. As imagens que chegaram de Butcha, zona residencial perto de Kyev, criam em cada um de nós a revolta necessária para a classe política europeia se sentir apoiada para ir mais longe nas sanções à Rússia.
E o BCE terá inevitavelmente de acelerar a retirada das compras de dívida e aumentar a taxa de juro. A velocidade a que a inflação está a subir pode desencadear não apenas instabilidade nos países, como a Alemanha, que valorizam a estabilidade de preços, como pode gerar uma situação de descontrolo na subida de preços.
É certo que a conjuntura é hoje diferente da que se vivia na década de 70, quando pela primeira vez se enfrentou esta complicada doença da economia que é a estagnaflação. Na altura os salários subiram, quer porque não se tinha percebido os efeitos que teria, quer porque o poder reivindicativo dos trabalhadores era superior, com sindicatos muito mais fortes do que os actuais.
É verdade que esta redução do poder de compra ajudará a controlar a subida de preços, mas vai inevitavelmente provocar desigualdades, agravando um problema que a pandemia também gerou e que já vinha de trás. As desigualdades na distribuição do rendimento criam, por sua vez, condições para um crescimento ainda maior dos populismos.
Não estamos de facto a viver tempos fáceis. Fechar os olhos, como fizemos até aqui, em relação ao comportamento da Rússia pode apenas adiar um problema que enfrentaremos mais tarde, com elevada probabilidade, numa dimensão ainda maior. A dependência da energia russa de países europeus com a dimensão da Alemanha e da Itália é, em si, reflexo de uma desvalorização, a tocar o irracional, do que Moscovo andou a fazer.
As políticas necessárias para combater a pandemia e depois recuperar a economia eram relativamente fáceis de desenhar. A oferta estava basicamente lá, só tinha de ser “aberta”, embora apenas parcialmente estrangulada pelo atraso na recuperação dos canais de distribuição. A procura também existia, com os consumidores ávidos de ir às compras e com poupanças acumuladas por meses em casa. E na Europa lançou-se o Programa de Recuperação e Resiliência com cerca de 750 mil milhões de euros para gastar – e que, hoje, olhando para trás, se percebe que pode ter sido um exagero, especialmente pelo curto período de tempo que se exige para fazer os investimentos, alimentando também pressões inflacionistas.
Neste momento as medidas exigidas por uns objectivos são contraditórias com outros. Ao combater a inflação, o BCE ameaça o crescimento; se não combater pode – sem certezas – salvar o crescimento, mas arrisca o descontrolo dos preços. A eventual decisão dos governos de serem mais solidários com a Ucrânia, cortando as compras de energia à Rússia, lança a Europa numa recessão e pode gerar até instabilidade social e política; não ser solidário é correr o risco de ver a Rússia avançar pela Europa dentro, tendo adiado apenas o problema de enfrentar Moscovo. Também as decisões no sentido de moderar a perda de poder de compra, com redução de impostos ou fixação de preços, arriscam criar problemas mais à frente, com agravamento do défice público ou a criação de prejuízos às empresas – como aliás os governos já viram acontecer no passado. ( A fixação do limite máximo para o preço do gás em Portugal e Espanha vai obviamente ser pago por alguém). Mas não apoiar de todo as famílias ou as empresas cria pobreza e falências, agravando ainda mais a crise e alimentando populismos.
O bom senso e o desenho de medidas concentradas nas famílias com rendimentos mais baixos e nas empresas mais dependentes de energia é o caminho racional dos governos – que não queiram arranjar problemas mais à frente. Um apoio sério à Ucrânia terá de ser uma escolha informada dos cidadãos. Os governos têm a obrigação de nos dizer o efeito que isso terá. Temos de estar dispostos a sacrificar o nosso conforto e consumo para defendermos o direito dos ucranianos à sua soberania, liberdade e até à vida, tirando o dinheiro que a Rússia usa para cometer estas atrocidades. Não há um caminho sem espinhos nos tempos que estamos a viver.