Na Alemanha Christine Lagarde já se chama “Madam Inflação” nas páginas do jornal popular Bild. É acusada de não se preocupar com os salários, as pensões e as poupanças do cidadão comum, por não estar a adoptar medidas para combater a subida dos preços. Todos sabem como a Alemanha tem medo da inflação, depois da sua história de hiperinflação – veja-se este livro de Adam Fergusson, “When Money Dies” . Mas será que um pouco de inflação não será o mal menor? Neste momento já parece ser um mal maior.

A desvalorização de alguns banqueiros centrais europeus em relação à inflação – excepção óbvia da Alemanha – pode ser explicada por várias razões. Uma delas é a convicção de que estes aumentos de preços são temporários, com causas muito concretas. E por isso, defendem, não nos devemos por enquanto precipitar com a subida dos juros, já que ainda não assistimos aos designados efeitos de segunda ordem – o contágio da subida, por exemplo, aos salários. Esta foi a posição assumida, por exemplo, pelo governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, na conferência da banca, organizada pelo Negócios, na semana passada.

Mas, nessa mesma conferência, António Horta Osório, actualmente a presidir ao Credit Suisse, defendeu o contrário, afirmando que vários estudos dizem o oposto. E se a inflação não for temporária, o preço que vamos pagar para a baixar “será mais intenso”. Um raciocínio em linha com o que defende, por exemplo, Martin Wolf no Financial Times, avisando que este “temporário” pode transformar-se em “permanente”. Ou mesmo Larry Summers.

Ricardo Reis fez recentemente uma coluna no Twitter mostrando que todas as teorias apontavam para a subida da inflação em 2021, uma situação inédita de unanimismo nas previsões teóricas. Para 2022 já não é assim, o que pode explicar este compasso de espera do BCE. Mas há outra explicação: o medo de voltar a errar.

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No início da crise financeira, em 2007, o BCE cometeu o erro de aumentar as taxas de juro em Julho e só começou a baixá-las no final do ano e de forma mais intensa depois do colapso da Lehman Brother’s, em Setembro de 2008. Levou demasiado tempo a perceber o papel que tinha no controlo dos efeitos da crise financeira no euro. Só a partir do “wahever it takes”, de Julho de 2012 de Mario Draghi, é que os decisores monetários e políticos conseguiram controlar o caminho trilhado pelos países do euro. Dada a sua história, é natural que o BCE tenha medo de cometer o mesmo erro de 2007. Medo de ameaçar a recuperação da economia por aumentar as taxas de juro. Mas com isso corre um sério risco de errar de novo, desta vez por não aumentar as taxas de juro.

As economias europeia e norte-americana foram e estão ainda a ser alvo de um choque expansionista histórico para combater os efeitos da pandemia. As políticas orçamentais foram (e estão a ser) historicamente expansionistas. Colocou-se dinheiro nos bolsos das pessoas e das empresas, tentando que a pandemia não agravasse as desigualdades, não levasse ao aumento da pobreza e não destruísse a capacidade produtiva. Os governos foram, em geral, muito bem sucedidos.

Este choque orçamental expansionista foi acompanhado por uma acumulação de poupanças. Quando os confinamentos terminaram, havia dinheiro para gastar, como ainda há, e muito vontade de ir às compras. E fomos todos às compras.

Mas enquanto o lado da procura reagiu muito rapidamente, o lado da oferta enfrentou problemas de recuperação. Estamos a viver um estrangulamento nas cadeias de produção que atrasam a chegada de matérias-primas e produtos às fábricas e aos consumidores. Como se pode ver neste artigo de David Bowers no Financial Times (para assinantes), pela primeira vez em 40 anos o número de empresas que identifica como restrição a produzir mais a falta de material para produzir é maior do que as que dizem estarem perante falta de procura (os dados são europeus, do Business and Consumer Survey da Comissão Europeia). Estamos assim perante uma situação de excesso de procura.

Numa situação como esta, de excesso de procura, políticas expansionistas, tanto orçamentais como monetárias, apenas lançam lenha para a fogueira da inflação. Que está também a arder por via da subida dos preços da energia. A subida dos preços vai inevitavelmente gerar uma onda de reivindicações salariais, viabilizada ainda pela escassez de mão-de-obra que se está a sentir quer na Europa, quer nos Estados Unidos. Uma espiral preços-salários parece, por isso, ser inevitável.

De que pode então ter medo o BCE? De ressuscitar a crise do euro por causa dos países mais endividados, como Portugal ou a Itália? É provável. Se as taxas de juro continuarem negativas durante algum tempo, enquanto a inflação sobe, os países mais endividados são os mais beneficiados, com prejuízo dos credores. Mas isto não é verdade para o cidadão comum.

A inflação fará com que, com o mesmo dinheiro, se comprem menos coisas, restando menos dinheiro para os outros gastos, o que acaba por tornar mais pesada a prestação da casa, mesmo que ela se mantenha. Só um aumento do rendimento impede que isso aconteça. E é aí que surgem os efeitos mais nefastos da inflação: todos os que têm rendimentos fixos perdem poder de compra. E acrescente-se: os que têm rendimentos fixos e pouco ou nenhum poder para reivindicar e conseguir aumentos salariais. E eis que entramos num acrescido factor de agravamento das desigualdades.

Um pouco de inflação não faz, de facto, mal a ninguém, bem pelo contrário. Um pouco de inflação impede, por exemplo, que se caia na pior das crises, a deflação. Mas, na conjuntura em que estamos, corremos o sério risco de ter bastante mais do que um pouco de inflação. Controlar a inflação significa sempre aplicar políticas contraccionistas, que serão tanto mais violentas quanto mais alta for a subida dos preços. Para evitar arrefecer a economia, o BCE corre o risco de, mais tarde, ter de provocar uma recessão. A decisão não é fácil. Os próximos meses dirão se, de facto, Lagarde é a Madame Inflação que se transforma em Recessão.