As crises vão e voltam, sempre assim foi e será, não há volta a dar. Esperar que venham tempos sem crises é como esperar que amanheça sem anoitecer. Contar com um quotidiano sempre protegido, com um trabalho para a vida ou um amor para sempre pode não dar bons resultados. Até pode acontecer, mas parece-me um algoritmo extraordinariamente difícil de formular. Tão difícil como estabelecer à nascença que teremos uma saúde de ferro até à morte, e nenhum mal nos acontecerá nunca. A palavra ‘crise’ assusta muito, e mais ainda quando temos que lidar com ela no plural. Como diz o ditado, um mal nunca vem só, e acontece-nos vezes demais termos que lidar com várias crises ao mesmo tempo. Os desequilíbrios e rupturas decorrentes de uma crise económica estão fatalmente associados a sofrimentos morais e emocionais. Se ficamos desempregados não nos falta só o dinheiro ao fim do mês, também nos falta o sentido de utilidade e de pertença. Em casos mais dramáticos perdemos até o sentido de vida.  As crises implicam sempre rupturas e perdas, mas é importante voltar à raíz do conceito. Etimologicamente a palavra crise também representa o momento do julgamento e da decisão, e se assim é então se calhar podemos tentar ir por aí. Ou seja, se não podemos evitar, estancar, conter ou decidir sobre uma ou muitas crises, podemos agir a partir delas.

A vida é difícil. Ponto. E nunca ninguém disse que a vida deveria ser fácil. Ponto. Há mais de trinta anos M.Scott Peck começava assim um dos seus livros mais vendidos em todo o mundo: The Road Less Travelled. O best-seller continua em alta porque esta sua verdade inaugural é universal e eterna: a vida nunca foi ou será fácil para absolutamente ninguém. Muito pelo contrário, é difícil para todos. Salva-nos o facto de sabermos que os tempos difíceis e de crise podem ser brutais, mas também podem ser detonadores de mudanças que nos são favoráveis. Instalou-se uma espécie de ‘psicose da crise’ geradora de medos e paralisias, mas há vida para além da crise. Sempre houve, insisto.

António Barreto, sociólogo e político, falou várias vezes em ‘crises convergentes”, aplicando a terminologia a uma escala mundial, mas na verdade a ideia de crises convergentes aplica-se numa escala individual. Voltamos ao mal que nunca vem só, para sublinhar que mesmo em tempos difíceis podemos optar e escolher entre vários caminhos. Nenhuma crise nos deixa apenas um caminho único. Conhecemos pessoas que perderam tudo o que tinham, mas recomeçaram uma e outra vez até recuperarem mais do que tinham perdido. Sei de uma mãe que enterrou os seus onze filhos e anos depois ainda encontrou forças para criar uma associação para ajudar outras mães em luto. Conheço uma mulher que saiu de casa num  sábado de manhã com a sua mãe, o seu marido e os seus 3 filhos para irem ao supermercado e voltou a casa sózinha, depois de um acidente em que morreram todos menos ela. Todos sabemos de muitíssimos casos de pessoas que deram a volta às suas múltiplas crises convergentes por recusarem baixar os braços e resistirem à vitimização. Termos pena de nós mesmos é natural, é legítimo e é fácil, digamos assim. Difícil é reagir e contrariar o que nos impede de andar para a frente e seguir caminho.

Muitos de nós já experimentámos o desemprego e sabemos que é um verdadeiro tormento. Para mim foi, porque se traduziu num tempo demasiado longo que sinceramente não esperava vir a estender-se tanto. Nunca pensei que pudesse durar 3 anos, mas foi o tempo que durou. Nem mais, nem menos. Se me tivessem dito na altura que ficar desempregado poderia ser um passo importante na minha carreira eu teria detestado. Não me teria feito sentido. Anos depois de ter dobrado esse cabo das tormentas percebo que sim. Ficar desempregado obriga-nos a procurar e a encontrar em nós os outros recursos, talentos e competências aos quais nem sempre prestamos atenção. Claro que sei que o desespero nos pode destruir, mas aprendi para sempre que tudo o que não nos destrói, constrói-nos. Guardo comigo esta e outras frases ditas por amigos sábios, mestres na arte de viver o quotidiano, aqui e agora, tal como ele se apresenta. A frase é de Vasco Pinto de Magalhães, autor de livros que ajudam incrivelmente a lidar com todo o tipo de crises, mas também passou a ser minha. Repito-a interiormente vezes sem conta e passo-a a outros. E também partilho a experiência mais resgatadora de todas: o voluntarido, a entreajuda e estar ao serviço de outros com crises muito maiores que as minhas. Cúmulos de pessoas em cúmulos de crises, mesmo ao meu lado.

Georges Duby, historiador e autor de belíssimos livros e romances históricos que aconselho a quem gosta de ler e não quer perder nada de essencial, investigou e escreveu muito sobre as sociedades medievais, onde a penúria era geral e, por isso mesmo, mais suportável. O ‘temor do dia seguinte’, vivido pelo povo empobrecido em tempos de grande escassez e miséria, que não tinha como alimentar os seus filhos nem acudir aos seus doentes, era compensado por uma teia de relações de solidariedade e fraternidade que os mais pobres teciam entre si. E “quando sobrevinha uma fome, o senhorio era obrigado a abrir os seus celeiros para alimentar os pobres. Era o seu dever e ele estava convencido disso”. Ou seja, estes mecanismos de entreajuda permitiram àquelas sociedades resistir a quase todos os flagelos menos as lepras e pestes que, essas sim, condenavam à morte depois de uma exclusão radical. No ano mil as pessoas que viviam com tremendas dificuldades, numa precaridade total, eram gregárias e infinitamente menos individualistas do que os mais abastados. Em muitas latitudes esta lógica dos pobres entre os mais pobres permanece em vigor, felizmente. Olhar para mil anos atrás ajuda a pôr em perspectiva o nosso tempo de vida. Permite compreender que realmente a vida é difícil, sempre foi e será. Voltando ao início, as crises vão e voltam mas há valores que permanecem. Um deles é certamente a solidariedade, e outro a humanidade. E através deles poderemos vir a encontrar os tais caminhos que nem sempre conseguimos ver nos momentos  de crise.

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