Nunca ninguém conseguiu, nem conseguirá, esquecer a retórica do inconseguimento, bem como a pantanosa teoria filosófica a ele associada no momento em que a burlesca dissertação sobre conseguir, ou não conseguir, foi exposta em público.
Passado um par de anos voltamos ao inconseguimento. Agora já não apenas como evocação literária delirante, de aspiração vagamente shakespeareana, ou como predicamento filosófico (predicamento rima tão bem com inconseguimento), mas como nova doutrina moral e ética.
Na mesma casa onde Assunção Esteves elaborou de forma magistral sobre o inconseguimento, reina agora uma dinastia de seguidores inconseguidores. Deputados e senhores que tentam a todo o custo convencer-nos de coisas tão inconcebíveis que nem eles próprios conseguem acreditar nelas. Vidé o magnífico presidente e excelso sucessor de A.E., quando garante que apesar de não haver ilegalidade, é melhor verificar a coisa na Comissão Eventual da Transparência. Eventualmente.
Ressalvando os servidores da nação que já vieram a público reconhecer o erro e associaram ao mea culpa a devolução do dinheiro dupla e indevidamente recebido, todos os dias lemos novos capítulos da fabulosa novela que nos transporta aos tempos antigos de Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, o ilustre personagem de Camilo, em A Queda Dum Anjo.
Também ele era um deputado desfasado da realidade e desligado de princípios. Ou melhor, começou cheio de boas intenções e preocupações, todas elas desnoveladas em discursos gongóricos, pomposos, circulares, em defesa da moral e dos bons costumes, mas rapidamente ganhou fastio aos mesmos e adquiriu costumes mais modernos.
Calisto Elói passou a fazer tudo aquilo que antes condenava. Enterrou tradições e virtudes, deixou crescer o bigode e o cavanhaque (palavra chique para a sua distinta ‘pêra’) e tornou-se um homem de luxos e vícios que gastava muito dinheiro. Ah! E passou-se para a oposição. Importa sublinhar este passo, pois não é despiciendo no figurão que era o morgado da Agra.
No mesmo Parlamento que Camilo genialmente retratou perpetuam-se as figuras extraordinárias, igualmente capazes de assumir a caricatura de si mesmas. Dizem e desdizem-se, prometem e descomprometem-se, garantem e riscam com a mesma facilidade com que respiram. Geram leis e, em podendo, cunham palavras e até conceitos visionários. O já lendário inconseguimento é apenas um deles, mas há mais, muito mais.
Carlos César e Ferro Rodrigues proclamam à nação irrepreensíveis legalidades, mas todos sabemos que uma coisa é a lei e outra a ética. A cegueira moral pode ser legislada, sabemos isso (observamos isso a diário na gestão da misérrima geringonça), mas a ética tudo vê e tudo sabe. A lei permite, mas a consciência não. Essa é a voz que nunca se cala.
E é aqui que, para certos deputados e representantes da nação, a tóxica teoria geral do inconseguimento casa com a teoria geral do esquecimento. Por um lado tentam fazer-nos crer (sem o conseguirem) que está certo receber dois subsídios pelo mesmo gasto; por outro esquecem-se de que é pela ética que evoluímos e é no Parlamento que tudo começa, pois a credibilidade da democracia depende da credibilidade dos seus representantes. Hans Kung, filósofo suíço e referência mundial em matéria de ética sempre disse que “defender uma moral diferente para cidadãos comuns e para os políticos é uma lógica maquiavélica”.
Veremos como se desnovela todo este enredo e quem faz mais doutrina, se o demónio parlamentar ou a consciência recta de quem conhece o valor das palavras que usa. Veremos se a ética continua a ter peso e valor universal ou se passou a ser um enigma para cada um adivinhar e adaptar a seu belo prazer.