Para seu desprazer ou gosto masoquista (às vezes, é difícil distinguir), o país mediático teve de se confrontar, na última semana, com uma das suas mais recentes perplexidades de estimação: 50 anos depois do 25 de Abril, um militar pode estar de novo a caminho de Belém. Primeiro, foi o encontro informal com o ministro da Defesa e líder do CDS num pacato bar de Lisboa que não pediu para entrar para a petite histoire política nacional das vichyssoises e do Pulo do Lobo; depois, a recusa em aceitar a recondução como Chefe do Estado-Maior da Marinha. Estava escrito nas mesmas estrelas que guiam a navegação: o almirante Gouveia e Melo, herói da batalha de Alcácer Covid, é candidato a candidato a Presidente da República.
Com as sondagens há muito a apontá-lo como o preferido dos portugueses para o lugar, rapidamente se seguiu o coro de indignações. Os civis dizem: como é que é possível, outra vez um militar em Belém? Os do Exército dizem: como é que é possível, um tipo da Marinha? Os dos partidos dizem: como é possível, um tipo que ninguém sabe se é de esquerda ou direita? As celebridades dizem: como é que é possível, um tipo que ninguém sabe quem é? Havendo tempo, passa-se a teses mais profundas, sobre como a nossa sociedade civil falhou e se entrega de novo nas mãos dos militares, ou de um putativo fétiche nacional com fardas e homens fortes.
Não iria tão longe. Em primeiro lugar, vale a pena lembrar que a última vez que os portugueses elegeram um militar para qualquer coisa corria o fresco ano de 1980 (se é fétiche, anda muito pouco tórrido); segundo, que os nossos grandes traumas foram com um discreto professor de finanças de Coimbra, não tanto com os militares, que até tentaram, por mais do que uma vez, arrancá-lo da cadeira. Não. O problema não é o país ter uma atração por militares; o problema é ter uma aversão por políticos. Agora, se “o problema” é do país ou dos políticos, isso já são outros quinhentos.
Marcelo e Cavaco, os dois últimos Presidentes, a quem quase tudo separa excepto inteligência e instinto político, precisamente, fizeram carreira a tentarem passar por políticos acidentais (ambos, já agora, escolheram a personagem do “professor”). Não é pecado, quanto mais original; por todo o mundo ocidental se procura, há muito, trazer “independentes” para a política, individualidades que não tenham feito carreira à custa de lealdades partidárias, que tragam os seus méritos para a gestão da coisa pública. Em Gouveia e Melo, o primeiro factor de atracção advém, portanto, daqui: de vir de fora do “sistema”; se usa farda ou calção de banho estampado, pouco importa.
Já o segundo factor prende-se com uma pequena coisa admirável pelo qual, pelos vistos, o país não mediático ainda lhe tem respeito e gratidão: ter feito o seu trabalho. Ter sido competente. Uma raridade, num país onde, cada vez mais, nada funciona. Na tv, diz-se que ele “organizou filas”, mas, do outro lado do ecrã lembram-se que, antes dele, esteve lá outro senhor na coordenação da “task force” da vacinação contra a Covid – esse até vindo dos partidos – e de como se vacinavam primeiro os presidentes de câmara e os amigos e as mulheres e maridos dos amigos e das amigas e a história se preparava para acabar como de costume em Portugal: no salve-se quem puder e nas orações a Nossa Senhora.
Mas a bolha acha que o país deveria mesmo era entusiasmar-se com Marques Mendes, há anos na incubadora política para ser protocandidato. Ou com Mário Centeno, outro “técnico” que veio de fora da política e acabou a saltar de ministro das Finanças directamente para governador do Banco de Portugal, e que, daí, tentou fazer o bypass para primeiro-ministro e que, como isso não deu, então, quem sabe, talvez Belém. Ou com António José Seguro – notem bem: querem que o país se entusiasme com António José Seguro, veja-se o nível de apartamento do real.
Porém, o maior sinal desta separação talvez seja outro. É que, enquanto esta parte da nação se entretém a discutir as presidenciais, parece ignorar, inconsciente ou deliberadamente, que essas não são sequer as próximas eleições. Que, pelo meio, há autárquicas. E que, em princípio, às pessoas preocupa mais a recolha do lixo, o buraco na estrada, o lar onde têm o pai, a escola do filho em greve, a segurança nas ruas, a violência nos subúrbios, a mata que arde quando há calor, a cidade que inunda quando chove, a emigração, a imigração, a inflação e o custo das rendas que não pára de escapar à lei da gravidade, do que o que vão fazer em Janeiro de 2026.
Quem sabe não é este o mesmo desfasamento entre elites e povo que tem explicado, por esse mundo azul afora, escolhas políticas que, depois, não compreendemos, ou a descrença nos meios de comunicação social tradicionais pela qual adoramos culpar a ignorância das massas e as redes sociais?
Se algo, em tudo isto, nos diz que o almirante Gouveia e Melo dará um bom Presidente da República ou, sequer, um bom candidato? Absolutamente nada. Sabemos tão pouco sobre quem é ou o que pensa, que se oferece como receptáculo perfeito: aos crentes, das suas esperanças; aos detractores, dos seus receios. Mas este que vos escreve e que aprendeu a ser feliz à maneira dos pessimistas deixa-vos por hoje com esta reflexão: lembrem-se de que, ainda há poucos anos, nesse idos de Março antes da Covid, a personalidade que se posicionava para suceder a Marcelo era Cristina Ferreira.