Sabemos que a mudança de ano é uma convenção. Porém, é impossível viver em grupo sem alguns pontos de referência partilhados. Gostamos de maldizer e menorizar as “meras convenções”, mas a verdade é que precisamos delas. Estas construções sociais, culturais, ou históricas são marcos que balizam as nossas vidas como indivíduos e, sobretudo, como parte de uma comunidade. Que balanço fazer, então, da política global em 2021? E o que esperar de 2022?

2021, um ano da resiliência?

Atravessámos um ano difícil. Não é por acaso que a resiliência foi uma das palavras do ano. Mas convém notar que a resiliência sai cara. A Europa pôde dar-se a esse luxo, mas, mesmo aí, com grandes assimetrias, com a Alemanha a gastar, sozinha, tanto quanto os outros 26 Estados-membros. Em muitos países do Sul Global a única alternativa era entre correr o risco da Covid-19 ou o do colapso de uma economia com muitos a viver no limiar da subsistência.

Fui rever as previsões que fiz a respeito de 2021. Confirmou-se que a vida global continuou dominada pela Covid-19. Confirmou-se que este seria um ano de guerra pelas vacinas e de um risco real de novas variantes, como a Omicron, com que tivemos de conviver nesta época festiva. Também se verificou uma tensão crescente entre os Estados e as companhias tecnológicas, que concentraram riqueza e informação numa escala nunca vista na história. O regime comunista chinês, com uma capacidade de impor a sua vontade que os regimes democráticos, felizmente, não têm, foi especialmente assertivo a esse respeito. Forçou, por exemplo, a Tencent de Jack Ma a desfazer-se de certos setores particularmente estratégicos, bem como a admitir novos sócios e gestores alinhados com o partido. Mas, nos EUA, este foi também o ano de uma pressão política crescente sobre o Facebook. Na Europa, avançou-se com nova legislação que visa taxar e fiscalizar melhor as grandes tecnológicas. Confirmou-se também a dificuldade em alcançar grandes acordos no que respeita ao combate às alterações climáticas. No presente, os custos e obstáculos à transição energética são muito elevados, pelo que se confirmou ser muito difícil chegar a um acordo entre 195 países com interesses tão diversos. Claro que houve avanços, mas, contrariando o eterno otimismo do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, a COP26 de Glasgow não foi um momento de viragem. Neste contexto, como em muitos outros ao longo do ano, confirmou-se a crescente tensão entre os EUA e a China como fator dominante que complica a política internacional, com a Rússia a contribuir, sempre que pode, para criar dificuldades adicionais. Já a respeito do populismo, pelo menos na Europa, e em especial nas eleições na Alemanha, não se confirmaram as previsões mais pessimistas.

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Um Bom Ano de 2022?

Há quem tenha expetativas positivas para 2022, pelo menos se fizermos fé nas sondagens (apesar de estas terem tido um ano complicado, e não apenas em Portugal). No inquérito de opinião que a IPSOS faz regularmente em 33 países (incluindo os EUA, a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul e a Alemanha) uma média de 56% dos inquiridos considera provável que 80% da população mundial esteja vacinada contra a Covid-19, no próximo ano, com pelo menos uma dose. Há, efetivamente, alguma esperança de que seja possível fazer-se um esforço adicional para garantir uma vacinação realmente mais global. Mas tanto ou mais do que avanços na vacinação, seria muito importante que se confirmasse o surgimento de medicação eficaz contra a Covid-19. Por muito se possa e deva debater estes temas, todos os dados demonstram que a medicina moderna é imbatível a lidar com doenças sérias. Se assim for, pode ser que 2022 seja, realmente, o ano de viragem relativamente à pandemia. A história demonstra, porém, que devemos ser prudentes a prever a evolução de uma pandemia, tanto mais quanto muito depende dos sistemas de saúde no Sul Global fragilizados por décadas de desinvestimento da responsabilidade de governantes cleptocráticos. E este não será o único problema a resolver. É de prever que todos os temas e problemas que destacámos relativamente a 2021 continuarão a manifestar-se no próximo ano. Mas, para 2022 queria destacar em particular o risco crescente de conflitos armados.

Ano novo, novas guerras?

Se há algo que ficou claro neste último ano foi que os louváveis apelos de António Guterres e da ONU para uma trégua pandémica foram um previsível fracasso. Como mostra o mais recente volume do Armed Conflict Survey o ano de 2020 foi mesmo aquele com o maior número de conflitos armados desde 1945. E não há sinais de que esta tendência esteja a abrandar. Até porque a crescente competição entre grandes potências globais e entre potências regionais se tem manifestado em cada vez mais guerras indiretas ou “por procuração” (proxy wars). Efetivamente, um segundo dado importante desse anuário é que triplicaram na última década as guerras civis muito internacionalizadas, as quais já representam quase metade do total. Ou seja, as grandes potências preferem evitar os elevados custos e riscos de confrontos diretos entre si. Porém, isso está longe de significar uma pacificação global. Significa, sim, que essas potências cada vez mais financiam, treinam e armam outros atores para defender os seus interesses e minar os dos seus adversários.

Como o passado nos mostra, inclusive o passado recente, é arriscado prever com precisão onde se localizará o próximo conflito armado. Em 2000 ninguém antecipava que os EUA estariam as duas décadas seguintes a combater no Afeganistão. No entanto, ficaria espantado se houvesse uma inversão significativa desta tendência de crescimento da conflitualidade, em geral, e dos conflitos indiretos entre grandes potências, em particular. As tensões crescentes entre os EUA, a China e a Rússia não auguram nada de bom deste ponto de vista. Estas três potências em particular estão a investir cada vez mais em defesa, a ponto de podermos falar de uma nova corrida aos armamentos, com a China procurar ativamente liderar. Isto é agravado pelo facto de muitos desses armamentos serem inteiramente novos, resultado de múltiplas inovações tecnológicas.

Tudo isto abala os mecanismos tradicionais de defesa e dissuasão, preparados para enfrentar ameaças minimamente previsíveis. Também torna bem mais elevada a possibilidade de um erro de cálculo e de uma escalada indesejável. Vivemos num mundo altamente conectado e digitalizado. No entanto, muitas dessas conexões são alvos apetecíveis, e o espaço e o ciberespaço são cada vez mais um novo campo de batalha. O resultado é que vivemos, claramente, num mundo mais perigoso.

Prova disso é que é bem possível que o Ano Novo nos traga uma nova ação armada do Presidente Putin da Rússia contra a Ucrânia (até como forma de procurar anular a sua quebra de popularidade com um sobressalto patriótico). É especialmente preocupante a insistência pública de Putin na exigência de que a NATO não se expanda mais e até se retire do Leste da Europa. Uma exigência que o líder russo certamente sabe que não será aceite, pelo menos nos termos em que foi feita. Será que Putin se limitará à retórica nacionalista ou, com isto, procura um pretexto para mais uma ação armada? Teremos de ver.

Perante estes desafios, seria fundamental que o Ocidente mostrasse uma frente coesa e unida, liderada pelos EUA. No entanto, a diplomacia do Presidente Biden não tem feito um grande trabalho desse ponto de vista. Basta recordar a retirada caótica do Afeganistão ou o caos diplomático criado pelo seu novo acordo com a Austrália e a Grã-Bretanha (AUKUS). Ações que deixaram muitas potências europeias duvidosas relativamente a quão fiável é a nova Administração Biden.

Importa também reconhecer que tudo isto representa um enorme desafio para a União Europeia. Uma política europeia – muito institucional, legalista, gradualista – lida mal com crises, em geral, e pior ainda com crises militarizadas que exigem respostas rápidas e musculadas. Entre muitos dos 27 Estados da União Europeia, e ao nível das instituições de Bruxelas, parece haver alguma noção dos desafios desta política global de riscos crescentes. A nova Presidente da Comissão, Ursula von der Leyen, adotou até, como mote, “uma Europa mais geopolítica”. A grande questão é saber se a Europa se conseguirá tornar um ator militar minimamente eficaz e coeso a tempo de reagir a estas mudanças? Não menos relevante será perceber se uns EUA cada vez mais polarizados e paralisados por divisões internas conseguirão assegurar o seu papel de liderança ativa na resposta a crises internacionais? Se a resposta a ambas as questões for negativa, arriscamo-nos a ficar, nos próximos anos, cada vez mais à mercê de tiranos agressivos. Vivemos, cada vez mais, num “admirável mundo novo” de inovação tecnológica, mas convém recordar que o famoso livro de Aldous Huxley não tem propriamente um final feliz.