1. Está a ver, caro leitor, aquele cartaz do Bloco de Esquerda (BE) sobre “os despejos” que está espalhado pelas principais cidades do país? Tem um slogan impactante em letras garrafais (“Parar os despejos”), uma imagem de um prédio com um ar modesto e um par mãos sinistras que abanam o prédio para enxotar pobres homens, mulheres e crianças que ficam imóveis a viver na rua. O cartaz é eficaz, como costuma ser a propaganda do Bloco, pois não só permite generalizar que todos os senhorios são uns monstros como argumentar que todos os inquilinos são uns santos. Mas há uma pergunta que falta responder: quem é o homem que abana a casa?

Hoje sabemos que só pode ser Ricardo Robles, claro!

Pelo menos, seria isso que Catarina Martins diria se Robles tivesse a infelicidade de pertencer a outra agremiação política como o PSD, o CDS ou PS. Se fosse o caso, o “homem que abana o prédio” seria saco de pancada do Bloco durante dias a fio. E havia razões para isso.

Basta seguir os pensamentos de diversos dirigentes do BE (incluindo o próprio Ricardo Robles) sobre a matéria habitação vs especulação:

“A cedência a privados vai resultar, como nós sabemos, no carrosel da especulação, não é?

Ricardo Robles, 14 de setembro de 2017, Observador

O contexto da pergunta do jornalista Vítor Matos era sobre uma Parceria Público-Privada que a Câmara de Lisboa tinha acordado para a construção de habitação na rua de São Lázaro. Robles nem queria ouvir falar disso e defendia que os imóveis deviam ficar sob gestão pública, porque, no final, os “privados” acabavam sempre “no carrosel da especulação” — uma crítica recorrente do vereador do BE.

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Pois, foi exatamente isso que Ricardo Robles fez. Sentado em cima do cavalo marinho do “carrosel da especulação”, com uma boa máquina de calcular na mão e a sua irmã sentada atrás, o vereador do Bloco de Esquerda esqueceu-se de defender que a Câmara de Lisboa deveria comprar o prédio à Segurança Social (“Estes apartamentos entregues aos privados deviam estar nas mãos do município para servir o município na política de habitação”, era o que defendia para a rua de São Lázaro), fez uma proposta vencedora no leilão da Segurança Social de 347 mil euros, pediu cerca de 825 mil euros emprestados, investiu 650 mil euros na remodelação do prédio, acrescentou-lhe, com a autorização rápida da autarquia, mais um andar e ficou com 11 apartamentos entre os 25 m2 e os 41 m2 que foram avaliadas em 5,7 milhões de euros por uma imobiliária de luxo.

Robles tem razão: os privados são uns malandros que só querem especulação — leia-se rentabilizar o melhor possível o seu investimento. A começar pelo próprio vereador do Bloco de Esquerda e a sua irmã.

“Não há nenhuma política de habitação que possa funcionar sem uma política clara para controlar os preços e não permitir os aumentos que temos visto”

Catarina Martins, 1 de julho de 2008

Se o Bloco de Esquerda defende uma “política clara para controlar os preços” na habitação, Ricardo Robles deve ter faltado às reuniões onde foi discutida tal política. Adquirir um imóvel por 347 mil euros e colocá-lo no mercado para venda a 5,7 milhões de euros não me parece uma grande política de controle de preços.

“Todos os despejos são feitos não por culpa do inquilino, mas por uma alteração que os senhorios querem fazer das condições de renda”. 

Catarina Martins, idem

Tem razão, Catarina. Foi isso o que o “seu” Ricardo Robles fez. Tinha cinco inquilinos no prédio mas quatro foram alvo de despejo por vontade dos co-proprietários do prédio: os manos Robles. O único inquilino que ficou, viu o seu contrato aumentar para 170 euros e ser legalizado.

Dos quatro inquilinos que saíram, um discordou da proposta dos novos proprietários de aumento de renda de 270 para 400 euros e colocou-os em tribunal a solicitar o pagamento de uma indemnização de 120 mil euros.

“É revoltante ouvir o testemunho de pessoas que estão a ser expulsas de suas casas, que nos contam com lágrimas nos olhos como lhes dobraram a renda e foram para a rua com os filhos, como as pressionaram (…) para fazer das suas casas “alojamento local” ou hostels. (…)

José Soeiro, 1 de julho de 2018.

É verdade. Basta ouvir o testemunho do proprietário do restaurante “Pão Com Manteiga” que foi despejado pelo proprietário Ricardo Robles e constatar que o anúncio de venda do imóvel refere explicitamente que trata-se de uma “prédio para investimento em área prime” e 11 frações para “serem utilizados em short term rental”. Eis um anglicismo que significa um conceito que tem sido diabolizado por Ricardo Robles, José Soeiro e restantes bloquistas: o alojamento local para turistas.

2. Ironias e sarcasmos à parte, o caso Robles também demonstra a (muito) difícil relação do Bloco com o direito à propriedade — a não ser quando é o direito de propriedade de cada dirigente bloquista que está em causa.

Na prática, o Bloco alimenta e tenta alimentar-se de um velho defeito lusitano: a inveja nacional sobre quem detém mais por ter trabalhado para isso ou por ter herdado.

Para o Bloco pouco interessa que os proprietários tenham sido vítimas de políticas públicas de rendas congeladas que começaram na I República, passaram pelo Estado Novo e continuaram em Democracia. Para a “justa” Catarina Martins e para os seus camaradas é melhor ter os centros de Lisboa e do Porto a cair de podre, sem inquilinos ou com rendas sociais financiadas por proprietários privados, do que ter a cidade com vida.

Ao contrário do que os bloquistas dizem, os cidadãos começaram a ser empurrados do centro para a periferia de Lisboa e do Porto precisamente há 30 anos, quando a economia tinha capital para investir em imobiliário nos centros urbanos mas os sucessivos Governos não tiveram coragem de acabar com o congelamento das rendas, destruindo qualquer hipótese de existir um racional económico.

3. O caso Robles também ganhou importância porque revela características essenciais do Bloco: fundamentalismo, intolerância e, acima de tudo, muita hipocrisia.

Catarina Martins ou as irmãs Mortágua hoje, como Francisco Louçã e Luís Fazenda no passado, são uma espécie de metralhadoras de retórica neo-marxista sobre os males do capitalismo e os malandros que tentam legitimamente ganhar dinheiro com o que eles apelidam de “economia de casino”. Seja a compra e venda de ações, seja o investimento imobiliário ou seja um simples salário claramente acima da média. Para o Bloco de Esquerda são todos iguais: são a personificação moderna do “porco capitalista” com cartola que os comunistas agitavam em jornais de propaganda na Europa dos anos 20 e 30 do século passado.

O mundo mudou, o comunismo perdeu em toda a linha, os próprios marxistas reciclaram-se e, pecado dos pecados, tornaram-se capitalistas mas o vírus da generalização totalitária continua bem presente na extrema-esquerda. Para o Bloco, como para os comunistas do início do século passado, todos os meios justificam os fins. Mesmo que seja necessário proteger, utilizando a terminologia dos comunistas, um “porco capitalista” como Ricardo Robles.

A ironia das ironias, contudo, é ouvir Catarina Martins a defender Robles com o mesmo tipo de argumentos que costumam ser utilizados por Donald Trump. Entre a cabala promovida pelo PSD, as acusações de fakenews e o apelo aos jornalistas (pelos quais Catarina luta, logo devem seguir a líder) para escreverem a verdade sobre o caso, @realCatarinaMartins, afinal, deve ter alguns pontos em comum com o @realDonaldTrump.

Uma coisa é certa: quanto mais tempo passar sem que Robles apresente a demissão, mais graves (e imprevisíveis) serão as consequências para o Bloco de Esquerda. Com o Partido Comunista Português à espreita.