Aviso já os espíritos mais sensíveis que esta história é profundamente deprimente.
Em setembro de 2022, depois de o PSD propor a criação de um vale alimentar para os pensionistas e reformados com menos recursos, o PS teve um dos seus habituais ataques de superioridade moral. Transpirando virtude, António Costa decretou que “o vale alimentar é uma lógica de direita, de falta de confiança na capacidade de as pessoas se gerirem a si próprias” e jurou, de forma enfática, que o PS “não tem a posição paternalista de dar apoio na forma de um vale alimentar”. Logo a seguir, a ministra Ana Catarina Mendes, exibindo a pureza de uma santa socialista, sentenciou que “isto não é solidariedade, isto é assistencialismo” e proclamou, como Moisés depois de descer do Monte Sinai: “Nós nunca daríamos um vale alimentar. Nós somos o Partido Socialista, não queremos nenhuma tutela do rendimento dos mais vulneráveis”. Seguiu-se, como é inevitável nestas coisas, o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, que, com a sua habitual falta de originalidade, descreveu a proposta do PSD como “uma espécie de caridadezinha”.
Em todas as declarações supracitadas, estes próceres da nação mantiveram sempre uma informação oculta: é que o governo do PS, efetivamente, não entrega um vale aos mais vulneráveis que só pode ser usado para comprar alimentos — mas apenas porque não consegue, uma vez que os dois concursos que abriu para criar um cartão-refeição ficaram suspensos no vazio por falta de empresas interessadas. De qualquer forma, este governo faz mais: através do Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas, entrega-lhes um cabaz já com alimentos, impedindo-os, por consequência, de gastar esse apoio noutras despesas que pudessem julgar mais urgentes ou relevantes. Nesse programa, e no que ele simboliza, os socialistas já não veem “caridadezinha”, “assistencialismo”, “tutela sobre o rendimento dos mais vulneráveis”, “falta de confiança na capacidade de as pessoas se gerirem a si próprias” ou, sequer, “paternalismo”. Já se sabe: quando o PS faz exatamente aquilo que critica à “direita” isso é apenas uma demonstração de amor pelos pobres e de dedicação à pátria.
A parte deprimente vem agora — é aquela parte em que ao cinismo se junta a incompetência. Esta semana, o Observador revelou que este Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas, que tanto orgulha o PS, devia estar a entregar um cabaz com 25 alimentos, de acordo com indicações da Direção-Geral da Saúde, que analisou quais os produtos “nutricionalmente adequados” para quem tem fome. Devia entregar 25, mas só entrega oito. Nos cabazes do governo faltam muitos alimentos que estavam na lista inicial da DGS: falta leite, falta queijo, falta arroz, faltam cereais de pequeno-almoço, faltam tostas, faltam bolachas Maria, falta frango congelado, falta pescada congelada, faltam sardinhas em conserva, falta uma mistura de vegetais ultracongelada para preparação de sopa, faltam brócolos, faltam espinafres, falta feijão verde, falta cenoura, falta marmelada, falta alho francês e falta creme vegetal.
Não é um problema de falta de dinheiro — é um problema de excesso de burocracia. Os concursos para aquisição de alimentos estão atrasados, a fiscalização é lenta e as impugnações pelas empresas que ficam de fora são muitas. Também não é um problema novo, que surgiu agora e para o qual não há ainda solução — é um problema antigo, que já se arrasta há vários anos e que o Estado não consegue, ou não sabe, ou não quer resolver.
A tudo isto, soma-se ainda o silêncio, que é o recurso habitual do governo quando quer tornar invisível o que é embaraçoso: confrontado com todos estes factos, o Ministério da Segurança Social decidiu, simplesmente, ficar calado. Quem não responde a perguntas, não reconhece o problema; e quem não reconhece o problema, não tem de assumir responsabilidades.
Tudo está mal nesta história: primeiro, o Estado falha; depois, o Governo faz demagogia com a miséria; no final, os pobres ficam sem comida. Se isto é possível, então qualquer coisa é possível.