Os cabazes alimentares distribuídos no âmbito do Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas continuam a chegar incompletos às famílias mais pobres, confirmaram ao Observador as organizações envolvidas na aquisição e na distribuição dos produtos. Apenas oito dos 25 produtos estão a ser distribuídos — um terço da quantidade que devia chegar aos beneficiários para satisfazer 50% das necessidades alimentares de cada pessoa elegível, de acordo com os critérios das autoridades de saúde.

Neste momento, e no mês de fevereiro, só há capacidade instalada para distribuir massa, feijão, grão de bico e ervilhas enlatados, atum e cavala em conserva, tomate enlatado e azeite. Faltam leite, queijo, arroz, cereais de pequeno-almoço, tostas, bolachas Maria, frango congelado, pescada congelada, sardinhas em conserva, mistura de vegetais ultracongelada para preparação de sopa, brócolos, espinafres, feijão verde, cenoura, alho francês, creme vegetal e marmelada.

Em declarações ao Observador, fonte oficial da Cruz Vermelha Portuguesa, envolvida no programa em cidades como Lisboa, confirmou que as dificuldades se registam de norte a sul do país e que os cabazes alimentares “ficam frequentemente aquém das necessidades”. Outras instituições que participam no programa assumem que se continuam a registar “muitos problemas” na aquisição e distribuição dos itens que deveriam estar incluídos no cabaz.

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“Os concursos para a aquisição dos bens alimentares estão atrasados, a burocracia da contratação pública está a arrastar a adjudicação das compras dos alimentos”, denunciou o responsável por uma das organizações participantes no Programa: “É preciso preparar os concursos, lançá-los, aguardar as propostas, avaliá-las, validá-las e adjudicá-las”, explica fonte da Cruz Vermelha ao Observador. Depois disso, o Tribunal de Contas tem de validar o resultado dos concursos e a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) tem de conferir a qualidade dos produtos. Por isso, “se o Governo não tomar decisões atempadamente, atrasa-se tudo”, prossegue: “Os serviços deixam de conseguir comprar os produtos em tempo real.”

E mesmo quando os concursos avançam, junta-se outra dificuldade: acabam muitas vezes impugnados pelos concorrentes que saíram derrotados no processo. Essas impugnações judiciais são analisadas pelos Tribunais Administrativos e Fiscais, que “levam uma vida” a avaliar os processos para aquisição de bens alimentares, queixa-se um dos envolvidos nos processos. Enquanto isso, a aquisição dos produtos não avança: “Na prática, enquanto os tribunais resolvem e não resolvem, as pessoas passam fome”, sumariza o responsável.

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A esta teia de obstáculos junta-se o custo dos produtos, que em alguns casos duplicou nos últimos cinco anos. O financiamento já não permite comprar tantos bens alimentares por causa da inflação; e é cada vez mais curto, tanto para cobrir o preço da energia utilizada para manter alguns produtos (como os congelados, que precisam de ser mantidos em arcas frigoríficas enquanto não são distribuídos) como para suportar o preço dos combustíveis para a distribuição.

Numa altura em que há cada vez mais pessoas carenciadas elegíveis para receber os produtos, os atrasos nos pagamentos às instituições particulares de solidariedade social pelo Ministério das Finanças ultrapassam os 12 meses, afirma uma fonte ouvida pelo Observador. Estão, por isso, a avançar com o próprio dinheiro para assegurar o acondicionamento e a distribuição dos cabazes que existem: “Isto está a afligir-nos a todos. Estamos neste momento a receber o apoio financeiro referente ao aumento dos destinatários decretados pela Covid-19. Nos territórios em que há autarquias nos consórcios, esses valores ainda não foram pagos porque ainda aguardam um despacho do Ministério das Finanças.”

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As dificuldades em completar os cabazes são um problema que já vinha descrito num relatório de junho de 2022 referente ao ano anterior. O relatório anual de execução do Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas mais Carenciadas, em que se insere este programa operacional, já admitia que estavam a verificar-se, nesse momento, “dificuldades de entrega de alguns produtos, não tendo sido sempre os mesmos” entre setembro e dezembro.

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Nos meses de setembro, novembro e dezembro de 2021 chegou a registar-se a falha de sete produtos; em janeiro e agosto foram três; e nos restantes meses dois. “Sempre que ocorrem falhas em determinado período, tem-se procurado reforçar, sempre que possível e adequado, a distribuição destes alimentos nos meses subsequentes”, descrevem os autores do documento. Já nesta altura, o relatório explicava que na origem destes constrangimentos estavam as “ações judiciais que foram interpostas no âmbito dos procedimentos contratuais para aquisição de cereais de pequeno-almoço, arroz, bolacha Maria e azeite”. O problema não só continua, como se adensou desde então.

O Programa Operacional de Apoio às Pessoas mais Carenciadas foi criado como “instrumento de combate à pobreza e à exclusão social em Portugal”. Uma das medidas é a “aquisição e distribuição de géneros alimentares e/ou bens de primeira necessidade”, um cabaz entregue a pessoas em situação de carência económica, em situação de sem-abrigo ou indocumentadas, que são acompanhadas por um técnico da Segurança Social ou de organizações habilitadas para esse efeito.

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O acesso ao financiamento para a aquisição desses produtos realiza-se por convite da Autoridade de Gestão a pessoas coletivas de direito público responsáveis pela área da segurança social. A distribuição, por sua vez, deve ser efetuada por pessoas coletivas de direito público e privado sem fins lucrativos, incluindo o setor cooperativo — ou, na falta delas, por entidades da área da segurança social. Essa parte da operação também é financiada, mas por concurso ou convite submetidos num formulário no Balcão do Portugal 2020. A abertura do processo é anunciada na página oficial da Autoridade de Gestão e no portal do Portugal 2020.

A composição dos cabazes foi inicialmente traçada com base numa proposta desenvolvida pela Direção-Geral da Saúde (DGS), em 2016, que descreve “o tipo de alimentos a incluir” e as “respetivas quantidades” para assegurar que são “nutricionalmente adequados”. O documento disserta sobre as necessidades energéticas em diferentes grupos etários, a distribuição recomendada de macronutrientes, as porções de alimentos aconselhadas em cada grupo da Roda de Alimentos, e a tradução desses números para as quantidades necessárias em bruto de cada produto. No fim de contas, cada cabaz devia assegurar 50% das necessidades nutricionais diárias das pessoas a quem são entregues.

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A DGS concluiu então que cada cabaz alimentar devia ter 18 produtos: leite meio gordo, queijo flamengo meio gordo, arroz, massa, cereais de pequeno-almoço, feijão, grão-de-bico, frango, pescada, atum, sardinhas, azeite, tomate em conserva, mistura de vegetais para a preparação de sopa ultracongelada, brócolos ultracongelados, espinafres ultracongelados, creme vegetal e marmelada. A fruta fresca não foi incluída porque “este programa de distribuição de alimentos torna pouco exequível a distribuição de alimentos frescos, tendo em conta as condições de armazenamento e transporte de alimentos das instituições que ficarão responsáveis pela sua distribuição”, justificou a autoridade de saúde.

Numa segunda fase da medida, que entrou em vigor em 2019 e que se prolonga até ao fim deste ano, o número de produtos por cabaz foi atualizado para 25.  Reduziu-se a quantidade de produtos hortícolas de quatro para duas porções diárias para obedecer ao “valor mínimo que permite assegurar as recomendações da OMS”, justifica a DGS, e a sua oferta é alternada para “aumentar a diversidade dos alimentos que são distribuídos”. Mas as quantidades de cereais, derivados e tubérculos aumentaram de oito para nove porções, “de modo a manter o equilíbrio nutricional dos cabazes”. E acrescentaram-se outros alimentos: tostas e bolacha Maria, que podem ser consumidos em alternativa aos cereais de pequeno-almoço, cavala em conserva e ervilhas enlatadas.

Assim, no total, o cabaz passou a ser composto por leite, queijo, arroz, massa, cereais de pequeno-almoço, tostas, bolachas Maria, feijão, grão de bico, ervilhas, frango congelado, pescada congelada, atum, sardinhas, cavala, tomate pelado, mistura de vegetais ultracongelada para preparação de sopa, brócolos, espinafres, feijão verde, cenoura, alho francês, azeite, creme vegetal e marmelada. Mas já em fevereiro do ano passado havia queixas de falta de leite, arroz, peixe congelado, atum enlatado, azeite e bolacha Maria que já se arrastavam desde setembro de 2021.

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À época, em declarações ao Jornal de Notícias, o Ministério da Segurança Social justificou os problemas com as “impugnações judiciais interpostas pelos concorrentes” nos concursos públicos de compra de produtos, “a demora na análise da emissão dos pareceres técnicos da ASAE [Autoridade de Segurança Alimentar e Económica] e a exigência da União Europeia na tramitação procedimental associada” aos concursos para aquisição dos produtos. Mas assegurava, no entanto, que a situação estava a ser “gradualmente ultrapassada”. Mas não está, revelam os relatos ouvidos pelo Observador por quem está no terreno. O Observador contactou o Ministério da Segurança Social, no final da semana passada para obter mais explicações, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.

Este programa terminaria no fim de janeiro e seria substituído por um novo método de apoio, também financiado pela União Europeia: uma parte dele continuaria a chegar às pessoas mais carenciadas em géneros alimentares, num cabaz semelhante ao que devia ser distribuído atualmente e outra parte passaria a ser entregue em cartão. Mas o novo esquema nunca avançou porque os dois concursos para a criação dos cartões ficaram desertos, como comprovam os registos no Portal Base. Nenhuma entidade concorreu ao apoio em cartão, apesar do aumento do financiamento do primeiro processo concursal para o segundo.

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Os atrasos com o novo programa motivaram a Segurança Social, responsável pela gestão e controlo dos apoios em causa, a continuar com a iniciativa dos cabazes para garantir o apoio alimentar até que o novo esquema entre em funcionamento. Já esta quinta-feira, em Conselho de Ministros, o Governo autorizou a realização de despesa relativa à aquisição, pelo Instituto da Segurança Social, de bens alimentares para o ano de 2023.