Quando é que se deve responder aos comentários a um texto? Não sei mas sei que percebi que devia responder aos comentários feitos ao meu texto “Os pénis de aluguer e os testículos de substituição” depois de ter lido alguns desses comentários, nomeadamente um assinado por Filomena Gonçalves, que se identifica como Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade. Aí, a dado momento, lê-se: “espero que nunca tenha um problema de saúde grave que requeira tratamentos médicos difíceis ou, por exemplo, necessidade um transplante (valha-nos Deus alguém lhe doar um rim – que exploração, que tábua rasa à dignidade humana), porque não podemos obrigar a sociedade a aceitar o inaceitável, ou seja, devemos todos resignar-nos aos desígnios da vida, e deixar nas mãos da mãe Natureza a nossa saúde e a nossa felicidade.”

O que me separa de quem defende as barrigas de aluguer é precisamente a minha rejeição do filho-orgão que se vai buscar a outro corpo, um corpo sem direitos a que se agradece e ao qual às vezes também se paga. Realmente um filho não é um rim. E uma gravidez não é um transplante.

Houve também quem escrevesse como se estar nove meses grávida fosse uma ajuda tipo baby-sitting: “…há alguém que ficaria feliz em ter um filho mas não tem, por razões de saúde, possibilidade para tal… há alguém que se disponibiliza a ajudar nisso…”. Ora estar grávida não é um processo irrelevante nem para a mulher que fica grávida, nem para a criança que ela gera. Vamos fazer de conta que essa relação pré-natal é importante para todas as mulheres e para todas as crianças do mundo à excepção destas?

O apagamento da importância da gravidez, ou mais propriamente da gravidez das barrigas de aluguer, leva também a considerandos como este: “Todo o artigo está errado porque muito antes das barrigas de aluguer existiam os bancos de esperma”. Quando não se distingue uma dádiva de esperma (e já agora de óvulos) de uma gravidez há de facto um problema.

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E há quem tenha certezas radiosas, que nestas coisas são sempre o princípio das tragédias: “A criança daí nascida [da barriga de aluguer], se for com óvulo da mãe e esperma do pai, é efetivamente de um ponto de vista científico, filha destes. Mesmo que o óvulo não pertença à mãe, o esperma é suposto pertencer ao pai, pelo que mesmo assim, a criança irá ser educada pelo seu pai biológico e terá uma mãe que presumivelmente lhe quer bem.”

É aqui que chegamos ao cerne da questão: a outra mulher, a que esteve grávida, não é efectivamente mãe? Não conta para esta criança? Vai omitir-se à criança a sua existência? Vão dizer-lhe que a outra mãe não é sua mãe? E a criança não tem direito a saber que existe uma outra mãe?

Tal como a mãe-barriga também o seu filho é visto de forma completamente passiva pelos defensores das barrigas de aluguer, partindo-se do princípio de que as circunstâncias do seu nascimento não lhe causarão dúvidas nem revolta. E que ele ficará eternamente agradecido por ter nascido e sido tão bem criado. Não desejo de modo algum estar na pele de quem se vai confrontar com as perguntas destas crianças, sobretudo quando deixarem de ser uns bebés lindos e fofos e se tornarem nuns adolescentes borbulhentos.

E há outras questões que temos de prevenir. Por exemplo: se no fim da gravidez a mãe-barriga não quiser entregar a criança à mulher que a encomendou, recorre-se para tribunal para lha tirar dos braços? Para determinar se é mais mãe quem deu o óvulo (nos casos em que deu) ou a que alugou o útero? E se a barriga de aluguer optar por interromper a gravidez pode ser obrigada a manter-se grávida pela mulher com quem contratou a gravidez? E se a mãe encomendadora desistir da encomenda, a criança torna-se automaticamente filha da mãe-barriga? E se os exames pré-natais detectarem uma deficiência e uma das mulheres quiser que a gravidez seja interrompida e a outra não?…

Poderia continuar a enumerar os problemas levantados pelas barrigas de aluguer. Mas creio ter conseguido mostrar que o assunto levanta questões eticamente tão sérias que não pode ficar confinado a um acordo entre dois grupos parlamentares. Muito menos pode ser legislado com a leviandade que caracterizou o processo de legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em que não se acautelaram situações como a das crianças nascidas após o casamento homossexual do seu pai ou da sua mãe e cujo registo civil arrisca agora vir a tornar-se numa ficção que faz parecer uma história benigna os antigos filhos de pai incógnito.

Pois independentemente daquilo que o legislador vier a decidir para a adopção e a co-adopção nos casais homossexuais, mulheres e homens casados com pessoas do mesmo sexo tiveram entretanto filhos biológicos que agora pretendem registar também como filhos das pessoas com quem casaram. Na altura não se pensou ou não se quis pensar neste problema, mas ele está aí nos tribunais num processo em que a ILGA contesta a “legalidade do ato administrativo proferido pelo Instituto dos Registos e Notariado, datado de 10.08.2012, que indeferiu o registo civil da parentalidade de pessoas casadas ou que vivam em união de facto com pessoas do mesmo sexo, em casos em que esteja apenas estabelecida a parentalidade de um dos membros do casal”.

E sobretudo espero ter contribuído para mostrar que amar um filho pode implicar que nos amemos a nós mesmos um bocadinho menos e aprendamos a renunciar. Renunciar ao próprio filho. Porque nascer de um contrato desta natureza é algo que não vejo como se pode impor a quem quer que seja. E muito menos a alguém a quem chamamos filho.

E, por fim, espero nunca ter necessidade de um transplante de rim. Mas, caso tal aconteça, espero também manter a lucidez suficiente para não considerar legítimo qualquer processo para o conseguir. Até para um rim é necessário ter princípios acerca da forma como ele é obtido. Quanto mais para um filho.