Nos últimos dias, assistimos a um curioso contraste: as oposições e a imprensa perguntaram ao governo a quanto montava, exactamente, o alívio do IRS, e o governo nada disse, ou foi vago; uma jornalista, Maria João Avillez, aqui no Observador, perguntou ao ex-primeiro ministro Pedro Passos Coelho o que se passou no governo durante o ajustamento de 2011-2014, e Passos Coelho respondeu sem rodeios, com os nomes e tudo. Vale a pena comparar esta duas atitudes: a opacidade do governo e a transparência de Passos Coelho. Dizem muito sobre a política portuguesa.

O governo foi acusado de mentir. Na era da vitimização, não faltou mesmo quem sentisse o direito de se declarar lesado. O governo, porém, não mentiu, até porque quase não falou. O governo deixou apenas crescer um equívoco. Porquê? Porque este é um governo prisioneiro da sua fraqueza. Uma fraqueza que foi opção dos líderes do PSD, quando, perante a maior maioria de direita de sempre, decidiram inventar um governo minoritário, entalado entre um PS que não está conformado com a sua derrota, e um Chega que não está satisfeito com a sua vitória. Nada pode, por isso, fazer sobre a estrutura desequilibrada do Estado, verdadeira causa do extremismo fiscal: sem reconfigurar o Estado, não pode cortar despesa, e sem cortar despesa, não pode renunciar a receita. Por isso, resta-lhe colaborar na ilusão fomentada por António Costa em 2015 de que a “página da austeridade” tinha sido “virada”, deixando crer que pequenos retoques são maiores do que realmente são. Daqui a uns tempos, teremos, na mesma linha, os “aumentos” de funcionários e pensionistas. A página que não foi nem poderá ser virada, por opção de Luís Montenegro, foi a “página de António Costa”: governos fracos à frente de um Estado disfuncional, para quem a política está fatalmente reduzida à “comunicação”, à “imagem”, e à “agenda mediática” – isto é, ao simulacro, a que depois o Dr. Marques Mendes dá notas altas no domingo.

Passos Coelho pôs logo os estúdios do regime a especular sobre as suas intenções, e houve mesmo quem conseguisse ver, no microscópio das intrigas, uma candidatura a qualquer coisa. Não há razão para tanto alarme social. Passos Coelho não fala o tempo todo, como alguns figurantes da vida pública. Mas quando fala, teve sempre esta inclinação: diz a verdade, por menos conveniente que seja, para ele ou para os outros. Disse a verdade agora, sobre o que se passou no seu governo. Mas disse também, quando no governo, a verdade sobre o que se passava no país. Deve ser a isso que a sabedoria do regime chama “erros de comunicação”. Mas é, se pensarem bem, uma grande liberdade. Passos Coelho é, entre os actuais políticos, o mais livre de todos: é o único que nunca perfilhou a política de simulacro. Pode, por isso, dizer o que pensa e o que sabe. Mais: pode pensar e saber, porque uma das condições para não enganar os outros é não se enganar a si próprio.

Dir-me-ão: pois sim, mas porque falou Passos Coelho agora? Provavelmente, porque foi agora que Maria João Avillez lhe fez a pergunta. O ponto não é esse. O ponto é este: porque é que, de repente, todos decidiram ouvi-lo? E a razão não é muito misteriosa: a 10 de Março, os portugueses começaram a libertar-se da ilusão que a oligarquia política criou em 2015. A divergência em relação às economias mais dinâmicas da Europa, as migrações descontroladas, a degradação dos serviços públicos, a captura partidária do Estado e o irregular funcionamento das instituições teriam, um dia, de pôr os cidadãos a duvidar. Após anos de simulacro, o país volta a querer ouvir a verdade. Naturalmente, presta atenção a quem, contra a corrente, sempre lhe foi fiel.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR