1. Parece que o Governo está muito preocupado com um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) sobre a economia portuguesa, nomeadamente com duas ou três páginas que falam da necessidade de aumentar o combate à corrupção no âmbito da relação entre a Justiça e a atividade económica. Parece que a razão para tanta preocupação se prende com a imagem que a defesa (repita-se a bold para não deixar dúvidas: “defesa”) do combate à corrupção (desculpe, caro leitor, mas é só para não haver equívocos: “combate à corrupção”) dará do nosso país. O Governo está tão preocupado que até Augusto Santos Silva, n. º 2 do Executivo e ministro dos Negócios Estrangeiros, ameaçou a OCDE de que Portugal apresentará um protesto formal caso o relatório final assente em “numa simples listagem de ideias feitas, perceções e estereótipos”, disse ao Expresso.

Acresce a esta fantástica prioridade da nossa diplomacia, o spin de transformar um relatório de uma entidade internacional com o prestígio da OCDE (da qual Portugal é um dos 18 países fundadores), numa espécie de conspiração de Álvaro Santos Pereira, ex-ministro da Economia de Passos Coelho e diretor do departamento de Economia da OCDE desde 2014.  Como se os relatórios da OCDE fossem feitos por uma pessoa e não por uma equipa, além de serem revistos linha a linha por um comité específico.

Comecemos pelo óbvio. Mal leram o Expresso, todas as embaixadas acreditadas em Lisboa informaram as respetivas chancelarias que o ministro dos Negócios Estrangeiros atacou a OCDE porque este organismo internacional atreveu-se a aconselhar um reforço de meios humanos e legislativos de combate à corrupção, tal como já fez com outros países. Confesso que não sei o que é pior para a imagem de Portugal:

  • um ministro dos Negócios Estrangeiro que não tem mais nada para fazer do que ameaçar um organismo internacional;
  • ou um Governo que confessa em público não ver grande interesse em combater a corrupção.

2. Portugal precisa de investimento direto estrangeiro como de pão para a boca, logo devia ter como prioridade a defesa de um mercado aberto e justo, em que a igualdade de oportunidades entre os investidores é sagrada — o que passa  necessariamente por um combate à corrupção sem tréguas.

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Um verdadeiro ministro dos Negócios Estrangeiros deveria passar precisamente a imagem contrária à que foi transmitida por Augusto Santos Silva — em vez de ser uma espécie de censor do tema “corrupção”. Primeiro porque a perceção internacional sobre a corrupção existente em Portugal pode e deve ser melhorada. No index de 2017 da ONG Transparência Internacional, Portugal ficou em 29.º lugar em 180 países, sendo que ficou atrás de 15 países europeus. Basta ver estes dados .

Depois há a chamada questão 21/11. Foi neste dia de 2014 que José Sócrates, secretário-geral do PS entre 2004 e 2011, foi preso preventivamente no âmbito da Operação Marquês. É provável que Augusto Santos Silva, um homem culto que domina várias línguas, possa não saber mas toda a imprensa internacional de referência noticiou a detenção de Sócrates. Este, sim, é que foi um dano grave na imagem de Portugal. Uma verdadeira mancha negra na nossa história que ainda hoje envergonha todos os portugueses. Se na altura fosse ministro dos Negócios Estrangeiros, certamente que Augusto Santos Silva protestaria junto de cada media internacional sobre a imagem que estavam a projetar do nosso país.

E ainda temos um ministro da Economia de José Sócrates que recebeu uma avença mensal de 15 mil euros do Grupo Espírito Santo durante todo o seu mandato como governante. Já para não falar da prisão iminente de Armando Vara, ex-ministro adjunto do primeiro-ministro António Guterres.

Compreende-se, por isso, que o PS não goste de ouvir de um organismo internacional como a OCDE considerações sobre um tema que faz lembrar Sócrates, Pinho e Vara e que prefira ignorar o facto de ter apoiado um chefe de Governo que gostava de receber dinheiro vivo em sacos de papel por sempre ter tido “dificuldades financeiras”, tendo sido acusado pelo Ministério Público de crimes de corrupção passiva (3), de branqueamento de capitais (16), de falsificação de documento (9) e de fraude fiscal qualificada (3).

3. Uma coisa é certa: as declarações de Augusto Santos Silva são completamente coerentes face à estratégia política do atual Governo sobre o combate à corrupção. Se não vejamos:

  • Ao contrário do Executivo de Passos Coelho que tinha uma ministra da Justiça (Paula Teixeira da Cruz) que assumiu tal combate como uma prioridade política, que indicou uma procuradora-geral da República (Joana Marques Vidal) que fez dessa luta a marca do seu mandato e que, mesmo em período de assistência financeira, tentou dotar o Ministério Público e a Polícia Judiciária de condições mínimas, este Governo do PS não tem como prioridade liderar esse combate.
  • Quer António Costa, quer a sua ministra Francisca Van Dunem, raramente dizem algo sobre a matéria.  E o Governo pouco ou nada investe quer no Ministério Público, quer na Polícia Judiciária, quando estas instituições debatem-se cada vez mais com uma escassez de quadros e de meios.
  • Basta recordar, por exemplo, o facto de o primeiro-ministro, aquando da nomeação de Lucília Gago como procuradora-geral da República, nada ter dito sobre a necessidade de combater a corrupção. Ao contrário de Marcelo Rebelo de Sousa que elencou tal matéria como primeira prioridade na nota de indigitação da nova procuradora-geral. Esse é o primeiro entre outros exemplos.

3. Deixo aqui um conselho grátis a António Costa e ao seu Governo: não é por decretarem a ‘lei da rolha’ sobre o elefante na sala chamado “Corrupção” que ele vai desaparecer. Bem pelo contrário.

O PS só limpará a autêntica mancha negra reputacional que os casos José Sócrates, Manuel Pinho e Armando Vara acarretam quando fizer do combate à corrupção uma verdadeira prioridade. É porque, ao contrário do que algumas mentes iluminadas da esquerda pensam, a corrupção está para lá dos partidos e das ideologias. Não é, obviamente, um exclusivo dos socialistas.

Pior: não apostar no combate à corrupção agravará a perceção pública de que o PS tem medo de combater a criminalidade económico-financeira. É que a corrupção não se esconde. Combate-se.

Texto alterado às 9h14m