Há, é claro, a questão da pandemia, que é impossível de evitar. Mas a complexidade e a incerteza são tais que a prudência é aconselhável no que se diz e escreve. Além disso, há uma atmosfera de secretismo cada vez mais palpável. Tome-se por exemplo, as reuniões das “altas individualidades” com os “especialistas” no Infarmed. Alguém sabe quem eles são? Ninguém que eu conheça o sabe, pelo menos. É que há coisas que não se contam às crianças. Não é por acaso que António Costa, falando como secretário-geral do PS, declarou recentemente que deseja “um Estado mais amigo, mais responsável dos cidadãos”. Não “para com” ou “face aos”, note-se, mas “dos”, o que obviamente sugere um pertencimento dos cidadãos ao Estado. O diabo, sob a forma de esclarecido e paternal tutor de menores, está nos detalhes. Mas voltemos aos sábios. Para o comum dos mortais, bem poderiam ser o Professor Mamadu (Grande Especialista de Trabalhos Ocultos), o Professor Diaby (Homem de Deus e Grande Vidente) e o Professor Fodé (Médium Discreto, Sério, de Renome Mundial). Deixemos, pois, a questão de lado.

Há também, certamente, o problema da austeridade. Mas toda a gente já percebeu que ela é como as máscaras da senhora da DGS: não existe até ao momento em que for impossível contestar que ela está aí, em plena força. O que não impedirá António Costa de continuar a negar a sua existência, até porque ele partilha a posição de Humpty Dumpty no Do outro lado do espelho. Lembram-se do diálogo com a Alice? “Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty, num tom assaz desdenhoso, “ela significa exactamente aquilo que eu decido que ela significa – nem mais nem menos.” “A questão é”, disse Alice, “saber se se pode fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas tão distintas.” “A questão é”, disse Humpty Dumpty, “quem deve dominar, which is to be master – é só isso.” Por esse lado, podemos estar descansados. Quem domina é António Costa e a austeridade nunca virá, tal como deixou de existir mal ele chegou ao poder. Alguém – uma “alta individualidade”, pois claro – até lembrou, numa ocasião solene, que contra ela estamos vacinados.

Rui Rio, tenho pena, ajuda à impostura. No outro dia, declarou timidamente (mas para a comunicação social pareceu um grande arrojo, o que diz muito sobre o presente estado das almas) que deveríamos estar preparados para, caso os planos do governo não funcionem, o pior poder acontecer. Caso os planos do governo não funcionem: isto já com a catástrofe a mostrar a sua cara feia por todo o lado. Palavras sem dúvida ditadas pelo “patriotismo” e a “ética”, mas que tendem a tornar indistinguíveis o governo e a oposição. Por acaso, vi no dia 22 o debate quinzenal na AR. Juro que, se não me tivesse sido explicada a diversa proveniência dos discursos, não teria conseguido descobrir a diferença entre os do PS e os do PSD. Para mim, aquilo soava a PSa e a PSb.

Resta um assunto de que se pode falar porque é fácil desfazer o nevoeiro que o rodeia: as recentes comemorações do 25 de Abril. Elas foram obviamente dominadas pelo discurso de Marcelo, um discurso quase inteiramente dedicado à justificação das comemorações na Assembleia da República. As televisões repetiram em uníssono que se tratava de uma “desmontagem” inatacável e irrespondível dos argumentos daqueles que se opunham à cerimónia da AR. Ignoro se foi ou se não foi e não creio que isso seja particularmente importante, mesmo que a preocupação com a justificação seja um indiscutível sinal de mal-estar no seio da sociedade. De outro modo, tanta e tão minuciosa justificação não faria sentido. O que me parece importante é o que se disse e o que não se disse, isto é: o conteúdo das comemorações.

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Que as comemorações de datas significativas – num sítio ou noutro, de uma forma ou outra – tenham lugar é uma trivialidade que faz parte da existência de toda e qualquer sociedade e não há razão alguma para o 25 de Abril ser excepção. É um luxo feliz e democrático não ser obrigado a segui-las, mas isso é outra coisa. O que se pode e deve questionar é o tom que elas adoptam. E o tom é péssimo quando se imagina na data celebrada uma pureza e uma sublimidade que não se encontram em lugar algum do mundo. A virtude poética de Sophia de Mello Breyner inventou o “dia inicial inteiro e limpo”, como, no seu tempo, Wordsworth podia, no Prelúdio, lembrar a sua participação no início da revolução francesa, escrevendo: Bliss was it in that dawn to be alive, / But to be young was very heaven! Acontece no entanto – como o viu o próprio Wordsworth, entre tantos outros – que a “substância do tempo” de que fala Sophia de Mello Breyner no seu poema, vista à distância, se revela menos a revelação de uma pureza prístina do que se pretende que é e que o “dia inicial inteiro e limpo” foi também um outro dia, parcial e impuro. Cidadãos adultos percebem. Claro que a lembrança do prazer da ventura sentida e vivida na juventude é mais do que legítima. Wordsworth disse-o, os que viveram Maio de 68 não conseguem escapar-lhe e, mais caseiramente, o 25 de Abril pode recordar bênçãos do mesmo tipo. Mas convém temperar a lembrança dessas alegrias com a consciência concomitante da impureza da substância adorada.

Ora, as comemorações do 25 de Abril – e esta, nisto, não foi excepção – participam sempre dessa ilusão. Dos discursos da AR às efusividades do Bloco – cada vez mais, como diz a minha mulher, a Mocidade Portuguesa do regime –, o princípio do prazer, para falar como Freud, esmaga tudo o que possa restar do princípio de realidade. Triunfa o feroz desejo de unanimidade, com a violência latente que sempre o acompanha. E voltamos a encontrar aqui algo que referi no início deste artigo: a expressão do desejo de um Estado concebido como o esclarecido e paternal tutor de menores, com óbvias vantagens para o grupo que se alça a esse esplêndido estatuto. Felizmente que o 25 de Abril, ao contrário do que se diz do Natal e da vontade dos que gritam que ele deve ser “sempre!”, não é “quando um homem quiser”. Porque senão estávamos bem tramados.

Por estas e por outras, seria bom, no que respeita aos conteúdos, arranjar uma outra maneira de o celebrar. Até porque assim se celebra mais a morte do que a vida. Se me é permitido usar a linguagem de três filósofos (muito diferentes, de resto, uns dos outros), celebra-se a inércia (o “prático-inerte”) contra a actividade (Sartre), o instituído contra o acto de instituição (Cornelius Castoriadis), o fundamento contra a fundação (Fernando Gil). Os primeiros elementos de cada um destes três pares significam, pelo menos parcialmente, a passividade, o conformismo e a ilusão. Naturalmente que as comemorações em geral têm de participar desta atitude: é, de certa maneira, uma sua função. O problema é que assim se oculta o que é vivo, com toda a sua asperidade e impureza, e a ocultação da vida acarreta a impossibilidade da compreensão (neste caso, da nossa auto-compreensão como sociedade). O que, dê-se as voltas que se quiser dar, não pode ser uma coisa boa.