A Agenda para o Trabalho Digno a entrar em vigor num 1º de Maio com contestação em escalada é, mais uma vez, a evidência, em grande medida, de confusão entre políticas efetivas e mera legislação, sendo claro para todos que as instituições e seus comportamentos não se mudam por decreto.

Quantas trabalhadoras foram e continuarão a ser pressionadas a trabalhar em casa durante a licença de maternidade ou a regressar mesmo antes do fim da mesma? Quantas desistiram de ter um segundo filho em função de tais pressões? Quantos trabalhadores solicitam, sem sucesso, mudança de horário em função de necessidades familiares? Quantos não sentem um dilema irresolúvel entre a cada vez mais premente obrigação de sermos cuidadores informais e o compromisso profissional?

A opção entre duas obrigações ou mesmo o abdicar de um direito em função de uma obrigação ou mesmo em função de um abuso de poder leva a um dilema irresolúvel: uma dissonância cognitiva. E se tal problema não for pontual mas antes uma forma de funcionar das instituições e, em particular, de instituições públicas? Que exemplo nos dá do tal Trabalho Digno?

Pode um médico de família ver 50 utentes por dia? Pode ser responsável por 2.000 utentes? Pode um enfermeiro ter um horário de trabalho suplementar em que chegue a trabalhar 70 horas por semana? Pode um polícia aceitar não haver polícias para proteger o cidadão mas haver em número suficiente para operações stop para o autuar? Pode um professor consecutivamente trazer trabalho para casa ao fim de semana e nas paragens letivas ser chamado a ‘jornadas’ e formações? Podem os custos de contexto do trabalho dos inúmeros profissionais deslocados, sejam professores, polícias, médicos, enfermeiros ou outros, colocar em causa a vida familiar, a educação dos filhos, o cuidar dos mais velhos ou mesmo uma vida digna junto do local de trabalho?

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A sobrecarga de trabalho é apresentada sob várias denominações (trabalho extraordinário, serviço suplementar, etc.) e em muitas, senão em todas as áreas da função pública, tal sobrecarga tem sido imposta em função da noção de ‘obrigação’, de ‘serviço’ ou mesmo de ‘missão’: ou seja, evidenciando assim que a recusa é uma deslealdade inaceitável e até punível. Tal situação esconde um conflito que as mais das vezes não é explicitado: uma obrigação, serviço ou missão para com quem? O funcionário público deve lealdade ao Estado mas… a sua identidade constrói-se em função da prestação de serviços ao cidadão. Quando lealdade e identidade estão em conflito porque o serviço exigido pela instituição coloca até em causa o serviço prestado ao cidadão, o profissional entra em dissonância cognitiva: ou seja, o funcionário-cidadão tem de fazer sentido entre duas posições fortemente conflitantes. Se a tal conflito, de âmbito profissional, acresce um conflito entre lealdade profissional e lealdade familiar, como acontece muitas vezes, pois a sobrecarga de trabalho implica tempo roubado à família, a dissonância cognitiva complexifica-se. Ou seja, a um problema de lealdades verticais ascendente e descendente conflitantes (o estado vs o cidadão como beneficiários do serviço público), acresce um problema de lealdades horizontais conflitantes (tempo para a profissão vs tempo para a família). A segunda dissonância cognitiva torna-se tanto mais problemática quanto ‘serviço prestado’ na profissão é concebido como sem sentido.

Claro que a forma mais simples de resolver este conflito é considerar que o funcionário ‘não é pago para pensar’, ou seja, deve apenas obedecer: ‘quem pode manda, obedece quem tem juízo’. Isto é mesmo às vezes dito e, se não o é diretamente, é como se fosse. Mas temos a certeza de que queremos médicos e enfermeiros, professores e polícias que são pagos para não pensar? Que só têm de obedecer?! Um trabalho público que, pela sobrecarga ou pela má direção, impede o efetivo serviço ao cidadão é, não só um abuso de poder organizacional, um contrassenso em termos de valor público, um claro problema de produtividade, como ainda um preditor de doença. Repare-se que estamos a dizer que a educação, a saúde, a segurança e outros valores públicos centrais estão a ser postos em causa na prestação efetiva ao cidadão.

Todas as instituições públicas parecem estar na actualidade em dissonância organizacional, em função de uma concepção de valor público esquizóide, e de uma ideologia organizacional que impede a produtividade, apesar do (e por causa do) aumento do trabalho ou/e de um trabalho sem sentido. Acresce que a relação conflitante entre lealdade/obediência e identidade profissional/prestação de serviço de qualidade ao cidadão reflete uma estrutura organizacional entre instalados e entalados em que o valor público (o desempenho/a prestação de qualidade/o cidadão/o objeto social) sai prejudicado. Ou seja, trata-se de uma estrutura organizacional ela própria dissonante em que o conflito do valor público ‘trabalhar para o estado’ vs ‘trabalhar para o cidadão’ é resolvido em função de um ‘administrativismo com resultados para a fotografia’: faz-se de conta que se trabalha para os cidadãos mas o que conta é a fotografia (as mais das vezes em números) para cima (número de utentes atendidos, mesmo que mal atendidos; número de alunos que passam mesmo que nada tenham aprendido; rendimento das multas policiais e por aí fora). O funcionário sente, percebe e, por vezes reflete que está a fazer parte de um conjunto de mentiras, de uma mentira geral e, em última análise, que está a mentir a si próprio como profissional e cidadão… pois o médico, o enfermeiro, o professor e o polícia também são cidadãos!

A dissonância organizacional como patologia social cria um clima organizacional socio-psicológico de dilemas irresolúveis e, nesse sentido, propicia ansiedade, depressão e, mesmo, uma atitude de não saída (impossibilidade de resolução de um dilema) capaz de activar uma apatia/desistência ou um caracter esquizóide, em que o ego está em constante conflito. A dissonância cognitiva, tais dilemas irresolúveis, impedem a pessoa de descansar, procurando ainda assim a encontrar soluções, e tal leva à exaustão e ao burnout. O suicídio é por vezes a saída encontrada. Não só o suicídio se correlaciona com um quadro de doença, como a depressão ou um processo esquizoide, como com o burnout que decorre da dissonância patológica organizacional. Em Portugal não há estatísticas que relacionem suicídios e profissões, à excepção das forças polícias, cuja taxa de suicídios é o dobro da população portuguesa em geral, uma das mais altas da Europa e, normalmente, com a arma de serviço, o que em si mesmo é simbólico.

Se a administração pública, nas suas práticas, é dissonante e produtora de patologias sociais, enquanto área teórica e de ensino não parece haver qualquer preocupação com tais questões psico-sociais. É que também para o ensino, a administração pública é uma área ao serviço do Estado e não do cidadão. É claro que é possível perceber o conflito organizacional retratado como um conflito entre perspetivas de Gestão vs Serviço Púbico, assim como diferentes perspetivas do ‘valor público’. E é claro que se a Administração Pública saísse do seu silo jurídico-económico-managerialista e assumisse o seu carácter interdisciplinar de ciências sociais aplicadas, este seria um tema certamente central. De uma forma ou de outra, a patologia social de uma administração pública em dissonância organizacional vertical e horizontal tem consequências gravíssimas para o país a todos os níveis, desde o nível institucional, ao nível organizacional, social, familiar e individual. De facto, é todo o país que está em dissonância cognitiva múltipla em resultado de uma administração pública dissonante.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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