O quiet quitting como é uma expressão em estrangeiro foi logo muito adoptada em Portugal. Mas nós, fortemente inovadores, já tínhamos inventado isso: chamávamos-lhe era rame-rame ou ramerrame. O rame-rame é talvez, uma das mais importantes instituições portuguesas, eventualmente uma das chaves para a cultura portuguesa. E, no entanto, não há uma única entrada no RCAAP (Repositório Científico Aberto de Portugal) sobre tal prática tão difundida em Portugal, porventura estruturante da nossa vida social.

Desde logo, há duas palavras, o rame-rame e o ramerrão. O Priberan dá-nos o mesmo significado para as duas: um som monótono e continuado, uma ladainha, litania ou salmodia; uma repetição monótona; o hábito de fazer uma coisa sempre da mesma maneira. O Priberan diz-nos que a origem será expressiva, decorrendo, assim, da onomatopeia de evocar essa praxe; o marasmo; a pasmaceira ou trabalho rotineiro, cansativo e enfadonho (como o Dicionário inFormal define ramerrão).

Não sou linguista e a palavra pode ter sido adoptada pelas suas características expressivas mas… rame rame existe em Indonésio do Leste de Java (curiosamente com a acepção de agitação e azáfama ou ruído e confusão). Por outro lado, Rama é (só) o maior Deus hindu e é conhecido pela sua vida de contínuas mudanças inesperadas. Há mantras ao Deus Rama, curiosamente para remover a energia negativa em que a evocação rama-rama é clara. Não será o rame-rame um outro oxalá português? Até poderiam estar na mesma frase: “Oxalá consiga sair deste rame-rame da minha vida!”. Assim, rame-rame parece ser uma agitação, mas sem sentido, e dizer-se que se está sempre no mesmo rame-rame é ter a consciência de se querer remover essa negatividade da nossa vida.

Vem isto a propósito de uma preocupação da Administração Pública portuguesa de se qualificar pela via de novos concursos quer pela mobilidade interna, quer mesmo um concurso externo de 1000 lugares de técnico superior (ainda que se trate da constituição de um banco de reserva e não se postos de trabalho efectivos). E o que há a dizer em relação a tal ambição senão estarmos de acordo? E, no entanto, convém perceber que a qualificação por si só pode não ser suficiente e que qualificações e qualificação não são a mesma coisa. Por um lado, teríamos de perceber bem quais são os constrangimentos sociais e institucionais ao valor dos funcionários. A pergunta simples a três ou quatro funcionários de cada instituição pública de quantos colegas conhece que foram emprateleirados, entalados, disciplinados ou mais ou menos irradiados, dar-nos-ia um retrato da situação. Muito do valor dos recursos humanos poderá estar a ser desaproveitado, não em função de uma efetiva ausência do mesmo, mas por questões de modelo de gestão. Desde logo não é claro qual seja o Valor central da Administração Pública. Depois, o voluntarismo de muitos dos funcionários, envolvendo-se em projetos ou/e qualificando-se, não é necessariamente visto como positivo. Canais de participação/inovação social de baixo para cima ou não existem ou só funcionam para quem interessa. Enfim, no final, se quem é recompensado não é pelo valor do que faz, mas antes por cliques e compadrios, de que serve afinal uma maior qualificação?

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O quadro que faço (do que ouço e vejo em variadas instituições públicas) é que à velocidade de mudanças relativas à digitalização e qualificação, se se mantiverem os mesmos modelos de gestão e liderança, corresponderá uma inércia que se define muito bem pelo rame-rame. O rame-rame é uma espécie de reação social de stress a um ataque patogénico. O rame-rame é a evidência de estarmos doentes e ao mesmo tempo um alerta para sairmos desse estado. Quando muitos nos dizem, com tristeza, que o que funciona na sua instituição e o que os chefes querem é o rame-rame, está tudo dito. Por mais que abram lugares para gentes com qualificação, não é isso que vai mudar alguma coisa quando a cultura do rame-rame é a das próprias chefias. À velocidade e à inércia (seguindo Paul Virilio), que caracterizam a mudança na Administração Pública em Portugal, somam-se uma sensação difusa, mas forte, de impoder que se correlaciona com o inflacionamento dos pequenos poderes, e, portanto, com a aceitação do abuso de poder. Essa violência latente, em muitas instituições públicas, sente-se no ar e na pele e até se ouve pelo silenciamento que muitas vezes impera: cada um está na sua vida e trata do seu quintal. Que tal quadro esteja na base de uma epidemia de ansiedades, somatizações várias e até suicidados pela sociedade (como lhes chamou Antonin Artaut) não há-de surpreender. Mas como as patologias são sempre individuais e cada um enfrenta a doença ou a morte sozinho não há como, nem há interesse em descobrir as instituições e as relações sociais que elas criam como os lugares da origem e reprodução de patologias sociais.

Ironia das ironias, neste mês de outubro foi publicada em Portugal a norma NP 4590:2023 “Sistema de gestão do bem-estar e felicidade organizacional – Requisitos e linhas de orientação para a sua utilização”. A Ordem dos Psicólogos já tinha feito um documento no sentido da promoção do Bem-Estar organizacional onde se refere a “necessidade estratégica de valorização das pessoas, da sua Saúde e do seu bem-estar, do seu desenvolvimento pessoal e profissional, como forma de prevenir os Riscos Psicossociais e garantir a sustentabilidade das organizações.”. Há instituições que criaram uns workshopsitos de bem-estar ao invés de possibilitarem que o seu modelo de gestão responda com efetividade à necessidade de realização pessoal e profissional de cada funcionário. É uma boa maneira de ‘sacudir a água do capote’ e ‘empurrar com a barriga’, mudando algo para que tudo fique na mesma!

Se o rame-rame enquanto prática social é o quite quitting português que denuncia uma energia negativa quer dos funcionários quer das chefias, falar abertamente do rame-rame como sintoma do falhanço das nossas instituições pode ser um loud quitting, quem sabe mais útil para a transformação. A ver se a tutela, essa instituição que pelo conceito impede a emancipação, e, portanto, a inovação social, porque se negaria a si própria, promove uma investigação sobre esta cultura tutelar que é a do rame-rame. Senão pode ser que alguém se anime a fazer uma dissertação de mestrado ou um doutoramento sobre o assunto!