Não, não vou culpar António Costa pela epidemia, embora António Costa, perante a explosão dos contágios, pareça tentado a culpar-nos a nós. Mas não, não lhe vou devolver a acusação. O que vou fazer é outra coisa: notar que a semana em que o governo revelou o seu Orçamento de Estado para 2021 foi a mesma em que agravou os constrangimentos sanitários, e dizer que o orçamento e o estado de calamidade fazem hoje parte da mesma história, que é a do estrangulamento de uma sociedade, primeiro por via fiscal, e agora também por via sanitária. Quando um dia se fizer o balanço da crise sanitária, é bom não esquecer que terá tido os efeitos que tiver porque veio em cima de uma longa crise fiscal, para que os actuais governantes  contribuíram mais do que ninguém. Bem, tenho então de admitir: sim, vou culpar um bocado António Costa.

O que se passa agora não começou agora. A crise fiscal do Estado explodiu em 2001-2002, com um primeiro aviso da Comissão Europeia. O défice de António Guterres (4,8%) não foi um azar. Resultou da instalação do PS no Estado, e do seu uso do Estado para controlar e dominar a sociedade. À medida que as restrições e os custos decorrentes do poder socialista impediram o país de competir na globalização, o Estado passou a crescer mais do que a economia. A partir daí, restou ao socialismo carregar na tributação e abusar do endividamento que o Euro tornara mais acessível. Nos últimos anos, a mudança de política do BCE amenizou a crise fiscal, em troca da chamada “austeridade”, a que agora se chama “contenção”. A carga tributária aumentou sempre, desde 2016 até 2019.

Este ano, o que a crise sanitária fez foi tornar novamente patente uma crise fiscal que nunca desaparecera, a não ser no noticiário controlado pelo poder socialista. Vale a pena perceber porquê. O governo reagiu à epidemia como todos os outros governos ocidentais: primeiro, menosprezo por uma praga que se esperava ficasse pela China; depois, confusão perante um vírus cujos efeitos sobre a saúde a ciência ainda não determinou; e finalmente, excesso de zelo, quando pareceu provável um colapso do SNS. No fundo, o que este vírus pôs verdadeiramente em causa, do ponto de vista do poder, foi o SNS, enquanto principal justificação, a par da Segurança Social, para a opressão tributária. O poder socialista sempre prometeu aos cidadãos que os seus impostos, por mais pesados, os garantem contra todos os riscos. Não se lhes podia deixar descobrir o contrário. Era preciso defender o mito. Para isso, tudo foi sacrificado: a economia, a educação e a própria saúde dos portugueses (não se terão realizado um milhão de consultas e 100 mil operações). Funcionou: as camas do SNS ficaram por ocupar. A crise fiscal, porém, veio imediatamente ao de cima. De duas maneiras. Por um lado, as contas derraparam logo e a dívida pública subiu a 133,8% do PIB; por outro, as ajudas à economia tiveram de ser limitadas.  Neste Orçamento de Estado, já há menos 1500 milhões de euros para esses apoios. A maior preocupação é o défice e a dívida. A única esperança, como já é regra no actual regime de estagnação, está nas transferências europeias.

A crise sanitária contribuiu para a crise fiscal; mas agora, com a segunda vaga da epidemia, é a crise fiscal que pode contribuir para a crise sanitária. Mesmo perante o recorde de contágios, toda a gente está proibida de falar de novo confinamento. Não porque se tenha admitido que o primeiro foi um excesso, mas porque as nossas finanças e a nossa economia já não aguentam mais. Bem podem as infecções disparar para níveis acima do pânico de Março-Abril. Vamos todos ter de inventar razões para fingir que agora é diferente, de modo a não recorrermos a uma quarentena que, manifestamente, está acima das nossas possibilidades. E vamos ter de fazer mais: mudar de comportamentos, e admitir o policiamento desses comportamentos, para que as limitações de um Estado falido continuem escondidas. O “autoritarismo” é inevitável quando é preciso esconder alguma coisa.

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Mais uma vez, a crise sanitária é complicada pelo medo governamental de que os cidadãos percebam que a maior carga tributária de sempre chega talvez para manter 705 mil funcionários, mas não para proteger a saúde da população. Cinco bastonários da Ordem dos Médicos pediram, entre outras coisas, a mobilização do sector privado e social. A ministra da saúde respondeu assim: “Este é o momento do SNS mostrar aos portugueses que valeu a pena terem investido as suas escolhas, os seus impostos, o seu afecto naquele que é um serviço público”. Mas não é o SNS que vai mostrar nada. Somos todos nós, mais uma vez, que temos de mostrar ao Estado que estamos dispostos a morrer para que ele viva. Ave SNS! Morituri te salutant.

Os constrangimentos sanitários em Portugal acumulam-se fatalmente em cima dos constrangimentos financeiros, regulatórios e ideológicos com que um Estado falido há anos asfixia a sociedade portuguesa. De empresas e trabalhadores que já mal suportavam a tributação, espera-se agora que suportem restrições de actividade. O país está entre o martelo fiscal e a bigorna sanitária. Talvez se consiga outra vez poupar aos cidadãos o espectáculo sinistro das insuficiências do SNS. Mas não vai ser possível esconder tudo durante todo o tempo. Esta semana, por exemplo, descobrimos também que a partir de 2030 ninguém deve esperar pensões acima de metade do valor do último salário, a não ser que o Estado se possa voltar a endividar loucamente. A ilusão do poder socialista não durará indefinidamente.

A crise fiscal e a crise sanitária tornaram-se a mesma crise: a crise de uma democracia capturada por uma clique política que tenta dominar a sociedade através de um Estado inviável.