Sempre que falamos do tempo presente usamos, com elevada autoindulgência, o rótulo da modernidade. Pois não há nada mais moderno do que o presente e só formos autores de uma profecia é que podemos arbitrar a pós-modernidade. E esta modernidade, tal como as sucessivas levas de modernidade que o passado conheceu (então como presente), é diferente das modernidades anteriores. Sempre foi diferente.

Esta é uma modernidade dada à excentricidade – e este é um subjetivo olhar. É uma modernidade dominada por uma coligação entre governos e a maioria dos cidadãos que, eleição após eleição, consensualiza a engenharia social que se entretece. A modernidade é atravessada por paradoxos. O que seria de louvar para o fugitivo de rotinas que causam um enjoo sistemático, não fosse a tradução de ventos opostos e aparentemente irreconciliáveis. Um exemplo: a “decadência dos valores”, tão apregoada por aqueles que insistem num compasso moral, com visibilidade no relativismo e no hedonismo, entra em choque frontal com o paternalismo estatal que vigia, impõe e proíbe, à vez ou em conjunto, e anima um novo moralismo que infantiliza o cidadão. A maioria consente a sua infantilização a pretexto das regras e valores que devem orientar a vida em comunidade. A dissidência é entendida como misantropia.

Das notícias do dia arremato três exemplos que juntam, no mesmo palco: um périplo de proibições (ou proibições disfarçadas de recomendações); um caso insólito que nos atira para o limiar do surrealismo; e a sempre vigilante sanha moralista que denuncia comportamentos dos outros, sujeitos ao apertado escrutínio dos moralistas.

Primeiro episódio: o governo espanhol inventou um passaporte para a pornografia. Gente atenta à saúde humana terá concluído que a dependência de pornografia é uma patologia, com a agravante de desviar os mais jovens de uma “sexualidade saudável” (seja lá o que isso signifique). E lá vem o grande irmão, sempre de atalaia ao bem comum, estender o tentacular paternalismo para o cidadão desatento, ou apenas refém do hedonismo, não se converter ao vício da pornografia. Em doses controladas, a pornografia é aceitável. O governo espanhol descobriu, na sua cartola da arbitrariedade, que trinta credenciais de acesso por mês é a medida aceitável. O cidadão espanhol tem de agradecer a bem-intencionada vigilância do governo: o consumo moderado de pornografia previne dependências obsessivas. Falta saber se, no próximo capítulo, o governo de Sanchéz vai decretar uma métrica máxima das relações sexuais, com regras que estipulam com quem se pode manter sexo e o que é permitido e vedado fazer.

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(Continuando a fantasiar, por que não instituir a métrica mínima e, caso ela não estivesse ao alcance do/a cidadão/cidadã, o Estado devia disponibilizar serviços a preceito para compensar a falta, hipótese que admitiria uma quota adicional de credenciais mensais de acesso à pornografia.)

Segundo episódio: talvez para compensar a diligente intrusão das autoridades públicas em (pedindo o termo de empréstimo a sua excelência, o presidente da república) “matéria” que se julgava do domínio da intimidade, alguém inventou um jogo na Internet que convida os internautas a clicarem na imagem de uma banana.

Vou saltar as possíveis ligações subliminares entre o clicar numa banana e a notícia anterior para restringir à “matéria” objetiva, ou seja, o jogo em apreço. O minimalismo do jogo – imagine-se o que é o movimento repetitivo de clicar na banana – sinaliza a cura contra a complexidade que é apanágio da modernidade. Cercados pela informação torrencial que transporta a difícil empreitada da seleção e da interpretação, corremos contra a maré através de um gesto simples: o minimalismo contra a intensidade do tempo presente. Fazendo a ligação com a notícia anterior, falta inventar esta teoria da conspiração: o jogo foi secretamente concebido pelo governo espanhol como terapia à disposição dos viciados em pornografia.

Terceiro episódio: um jornal sensacionalista descobriu que a mãe das gémeas (que tiveram direito a um tratamento médico dispendioso depois da alegada intervenção de um facilitador-filho-do-presidente da república) se dedicava à venda online de produtos sexuais enquanto vivia em Portugal. A notícia é apresentada com a habitual dose de sensacionalismo, a que se junta um bolorento juízo de carácter por Daniela Martins se ter dedicado à comercialização de artefactos que, possivelmente para o jornal, serão usados por mentes depravadas e dadas à luxúria irrefreável.

Só o juízo de valor é ostensivo: a malvada senhora, que conseguiu extrair aos contribuintes portugueses uma verba elevada para o tratamento das filhas, é brasileira (ó sinal dos tempos, que amadureceste uma xenofobia e um racismo que se julgavam apenas latentes) e, ainda por cima, foi dona de uma sex shop online. Eis a sua desqualificação final. Se fosse peixeira, ou mulher a dias, ou assessora de um grupo parlamentar, tudo nobres atividades que não colidem com o passaporte da moralidade dominante, Daniela Martins só arrastava o opróbrio dos meios ínvios que usou para ter acesso ao tratamento tão oneroso (as facilidades do tão reputado facilitador, como se todos fôssemos virgens no exercitar da não menos famosa instituição nacional, a cunha).

Uma mãe que, legitimamente enquanto mãe, procurou um tratamento para a doença rara das filhas gémeas, recorrendo a meios que os zeladores da moralidade consideram reprováveis, afinal tem um passado que fica em débito com os bons costumes. Devia ser instituído um passaporte de bons costumes que avaliasse quão impolutos somos e fomos. Imagino que os jornalistas do periódico sensacionalista saíram diretamente de um convento, mas já nem esta é uma credencial à prova de suspeitas. Estou capaz de adivinhar que esses jornalistas nunca foram a uma sex shop, nunca tiveram aquilo que os patronos dos bons costumes chamariam comportamentos sexuais desviantes, nunca frequentaram a pornografia (online ou outra), nem têm contas a ajustar com a sua consciência nesta “matéria”.

Continuamos a ser exímios a julgar os outros sem estendermos o exercício a nós mesmos. Bem-vindos ao império da moralidade com fundo falso e da hipocrisia averbada no cartão de cidadão.