A liberdade de expressão é frágil. Talvez uma versão exacerbada contenha riscos para a liberdade que se quer defender. A ausência de limites faz com que a liberdade maximizada de uns invada a liberdade de outros; fica em causa a Liberdade como valor. Noutros casos, a linguagem desaforada de uns poderá autorizar a delimitação de fronteiras que suspendem a liberdade de expressão; a liberdade de alguns fica hipotecada.

Aceitar limites à liberdade de expressão traz um problema: como e onde estabelecer os limites? Aqui começam as divergências, ou não fosse tanta a carga subjetiva quando um conjunto de pessoas reflete sobre a demarcação da liberdade de expressão. A arbitrariedade entra em campo, ferindo as garantias da liberdade de expressão, pois as fronteiras dos limites são maleáveis (umas vezes curtas, outras alargadas) em função das preferências de quem se coloca na posição de julgador e de quem depõe como réu no anátema da liberdade irrefreada.

Por muito que seja arriscado defender que não pode haver limites à liberdade de expressão, a alternativa encerra consequências piores. Longe de podermos ambicionar soluções perfeitas, escolhemos a que implique menos danos. Cotejadas as alternativas, as vantagens de não admitir limites à liberdade de expressão superam as de impor restrições. Esta é a hipótese mais danosa.

O contexto, as circunstâncias e as responsabilidades dos agentes que maximizam a liberdade de expressão devem ser medidos para apurar se ultrapassaram o admissível. Argumenta-se: a um deputado não deve ser permitida a utilização de palavras e expressões racistas ou xenófobas. Todavia, são toleradas ao cidadão comum, o contexto em que são ditas é informal. Um deputado tem responsabilidades institucionais e políticas. Não consigo entender a discriminação negativa do deputado (e positiva, do cidadão comum), pois não responde ao princípio da igualdade. O estatuto das responsabilidades especiais dos deputados não legitima esta desigualdade.

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O contexto do episódio que deu origem à polémica em curso também importa. A sensibilidade tem sido seletiva. Não perco tempo com outra (mais uma – o rol será interminável) exibição de boçalidade do líder da direita radical. As palavras ficam por conta de quem as profere. Os partidos das esquerdas esbracejaram furiosamente, queriam que o presidente da Assembleia da República advertisse o líder dos rebeldes pela diabrura. O presidente recusou, invocando a liberdade de expressão. Ato contínuo, passou a ser alvo da ira dos que se opõem às tropelias parlamentares de Ventura. Entrámos no policiamento da linguagem política, que não é compatível com a liberdade de expressão.

Dos que protestaram o episódio parlamentar não se ouviu uma palavra de repreensão ao grupo de jovens que ocupou a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto em protesto contra a beligerância de Israel na Faixa de Gaza. Não está em causa o direito de manifestação dos jovens. Está em causa a recusa em desmobilizar perante queixas de estudantes que sentiram a perturbação das aulas. Isso foi ignorado pelos  embaixadores da liberdade de expressão seletiva. Estavam distraídos e esqueceram-se de denunciar os jovens ativistas por irem além dos limites da liberdade de expressão e invadirem a legítima liberdade dos estudantes lesados.

As figuras gradas da seletividade da liberdade de expressão podem graduar as ofensas à liberdade para concluírem que desdenhar dos turcos (preguiçosos) é pior do que prejudicar o direito de os estudantes da universidade terem aulas com a serenidade desejada. Uma manifestação de racismo e de xenofobia é mais grave do que defender a liberdade de os estudantes terem aulas estando sitiados por ruidosos ativistas pró-palestinianos. Já que insistem nos limites à liberdade de expressão, o que têm essas figuras a dizer sobre a intolerância dos manifestantes pró-palestinianos na Universidade do Porto? Só se ouviu silêncio.

(E antes que alguém tire conclusões precipitadas, uma declaração de interesses: concordo com o mandado de captura do Tribunal Penal Internacional contra o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel e os três líderes do Hamas. )

É na seletividade das reações perante palavras racistas ou xenófobas dos outros que se industriam os padrões diferentes dos ofendidos. Um deputado pediu desculpa ao embaixador da Turquia (e não esteve mal: impunha-se desmanchar a boçalidade do Ventura), mas, adivinho, já muitos devem ter contado anedotas sobre alentejanos em que o fundamento da anedota é a mítica preguiça regional. Uma anedota fora do parlamento não é racismo, é apenas para fermentar a boa disposição. Devíamos começar a prestar atenção a esta xenofobia invertida, para não sermos tutores de (mais uma) discriminação positiva que evita maltratar os outros e não se incomoda com a humilhação dos nossos.

Há um plano pragmático que devia importar na reflexão desta polémica. A experiência recente não terá contado para nada, ou não é reconhecida como tal. Os irredutíveis e os teimosos não admitem que o cerco sanitário à direita radical teve efeitos contraproducentes. A exponenciação dos votos do Chega não se deve apenas ao cerco sanitário, mas deve ter ajudado a reforçar o contingente dos radicais. Manter a marcação homem-a-homem e cercear a liberdade de expressão dos radicais é o que eles mais querem. O melhor é deixá-los a falar sozinhos, sem que a omissão normalize o discurso boçal, racista, xenófobo, misógino, homofóbico e negacionista. É deixá-los mergulhar na sua própria infâmia. Se for o caso, e a vontade das vítimas diretas do racismo e da xenofobia assim contar, que sejam processados em tribunal à conta dos crimes que puderem ser provados pela via contenciosa. Continuar a dar este palco de confrontação reforça a direita radical. Porque – é bom darmos conta desta lamentável realidade – o racismo e a xenofobia estão mais entranhados na sociedade do que julgávamos.

Erguer cercas sanitárias que envolvam a peleja corpo a corpo com os radicais não ajuda a resolver este problema estrutural da sociedade. Só o agrava. Os advogados de defesa dos limites à liberdade de expressão querem arcar com esta responsabilidade? Deixamos-lhes a arrogância de determinar o que pode e não pode ser dito? O que chamamos aos que querem amordaçar a boca dos fascistas: censura (mal) disfarçada?