Freud conta a história num dos seus livros: “Um homem que empobreceu pediu 25 florins a um homem rico do seu conhecimento, depois de lhe ter assegurado várias vezes que se encontrava numa situação difícil. Nessa mesma noite, o seu benfeitor encontra-o no restaurante, instalado em face de um prato de salmão com mayonnaise. Censura-o então: «Que é isto! Pede-me dinheiro emprestado, e põe-se logo a comer salmão com mayonnaise. É para coisas assim que precisa do meu dinheiro? – Não o compreendo», responde o homem acusado. «Quando não tenho dinheiro, não posso comer salmão com mayonnaise, e quando tenho dinheiro não devo comer salmão com mayonnaise. Mas quando diabo quer você que eu coma salmão com mayonnaise?”.

Ignoro por inteiro, bem entendido, o valor dado ao salmão com mayonnaise em ignotas zonas (provavelmente a Galícia) do império austro-húngaro nos primeiros anos do século XX, mas, graças à árdua experiência da vida, consigo pôr-me, para minha grande vergonha, na posição do amigo pobre; e, embora muito menos, mas para minha vergonha ainda maior, igualmente na do amigo rico. O que me permite conceber uma subtil variação a esta história.

Imaginemos um restaurante português. Imaginemos uma sala cheia de pessoas que todas, para simplificar, pedem salmão com mayonnaise. Tudo pessoas muito nossas conhecidas. Mais uma vez para simplificar: políticos. E imaginemos, em vez do amigo rico, uma empregada, com um ar um bocadinho ríspido, mas sem ser objurgatório. A empregada, que está ao corrente das dificuldades económicas dos clientes, avisa-os que o salmão com mayonnaise, apesar de bom, é particularmente caro nesta altura.

Vários clientes célebres estão ausentes: Cavaco Silva, Pedro Passos Coelho e Paulo Portas. O Presidente da República anda a explicar porque é que, durante mais algum tempo, não vamos poder comer salmão com mayonnaise (o que mereceu o comentário de Mário Soares: “O tipo nem sequer gosta de salmão com mayonnaise!”). Passos Coelho está em casa a fazer contas para poupar e a pensar o que, à falta de salmão com mayonnaise, poderá oferecer aos clientes (taínha de escabeche?) nas próximas eleições (e, segundo Mário Soares, a comer salmão com mayonnaise às escondidas com uns amigos; é o Relvas, parece, que o arranja). Paulo Portas deslocou-se aos Emiratos Árabes Unidos para vender salmão com mayonnaise (segundo Mário Soares, sardinhas em molho de tomate; e, de resto, não vai conseguir vender nada). Jerónimo de Sousa também não está. Não faço ideia porquê. Talvez, custa-me admiti-lo, por ser simpático.

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Numa mesa estão Mário Nogueira e a deputada verde à conversa. Ela indignada, como é costume, e ele felizardo, por sua natureza. Uma espécie de Serafim Lampião com consciência de classe. É um homem que se ri a bandeiras despregadas. Não prestam atenção à empregada. Discutem o valor poético das expressões “dizer Abril”, “viver Abril” e “respirar Abril”. Ela é mais por “dizer”, ele é mais por “respirar”, mas estão de acordo no “viver”. Na mesa ao lado, Catarina Martins e João Semedo contemplam-se, tristes. Também não dizem nada à empregada (Marisa Matias teria dito). Nostálgicos, perguntam-se um ao outro se ainda valerá a pena tentar algo em torno da necessidade urgente da legalização da relação do salmão com a mayonnaise.

Mesa número três. Mário Soares nem olha: “A culpa é do gajo!”. Mesa a seguir. Ricardo Salgado, abstendo-se de qualquer expressão facial, diz que dessas questões tratam os subalternos. Mesa número cinco. Joaquim Sousa Ribeiro, Presidente do Tribunal Constitucional: “Nenhum critério densificador suscita a imotivação do consumo gradativo de salmão com mayonnaise. Como se sabe, quanto mais alto me reporto, mais evidentemente me sacrifico. E não respondo a pedidos de aclaração. De resto, o que lhe faz pensar que não tenho dinheiro para comer salmão com mayonnaise?”.

E, de súbito, entra Marcelo Rebelo de Sousa, muito lampeirinho, sentando-se na mesa do canto, exactamente enquanto José Sócrates explica à empregada: “Estou a comer, mas não é para pagar. Keynes tornou claro que nunca se paga o salmão com mayonnaise. É, aliás, preciso ser muito estúpido, para não dizer um perfeito imbecil, e não perceber nada de economia, para pagar salmão com mayonnaise. O deputado João Galamba elucida-a depois sobre os detalhes da coisa.” Marcelo Rebelo de Sousa, ao fundo da sala, ri-se compulsivamente.

Por um feliz acaso, António Costa e António José Seguro estão frente a frente, em mesas separadas. António Costa explica que é preciso, como no tempo de Sócrates, capabilizar os portugueses para comerem salmão com mayonnaise de uma forma sustentada. E acrescenta: “Comigo, os socialistas poderão comer sempre salmão com mayonnaise. Com António José Seguro não.” É difícil ouvi-lo, porque, ao mesmo tempo, António José Seguro, subindo o tom de voz até terminar o seu parágrafo mental, conclui: “Comigo, os socialistas poderão comer sempre salmão com mayonnaise. De uma forma capabilizada. E sustentada. Com António Costa, não.” Não tem palmas, mas Marcelo Rebelo de Sousa ri-se compulsivamente.

Confusa, a empregada dirige-se à mesa de Marcelo Rebelo de Sousa. Surpresa das surpresas, ele já não lá está! Mas, no gigantesco ecrã de televisão do restaurante, pode-se vê-lo, animadíssimo, contar a Judite de Sousa, na TVI, a história do salmão com mayonnaise. Judite ri-se compulsivamente. E, marota embevecida: “Não é como a da vichyssoise, pois não, professor?”. Ele, prazenteiro, ri-se e diz que não, antes de passar às notas finais.

Enquanto isso, muito longe, na capital da Bélgica, uns senhores e umas senhoras – o amigo rico do outro -, que, por um processo qualquer, estão ao corrente do que se passa por cá, olham-se entre si e dizem: “São malucos!”. E, muito mais perto, de nariz preso à grande janela do restaurante, uns compatriotas nossos, contemplativos, colam-se ao vidro. Tinham-lhes dito que podiam comer salmão com mayonnaise todos os dias, e eles, coitados, acreditaram. Agora perceberam que não podem, ou só podem muito raramente (os que podem), e olham, como para uma jaula de macacos, as conversas dos clientes nossos conhecidos. E começam a dizer, como os outros de Bruxelas: “São malucos!”.

Garanto que teria recuado perante o risco do ridículo de contar uma história tão florida, a suar para ter graça, se o óbvio não fosse tão óbvio ao ponto de quase ferir dizê-lo directamente. Não menos que a do amigo pobre que pediu dinheiro emprestado ao amigo rico, as respostas dos nossos políticos são, sob a aparência de legitimidade política, deslocadas. Toda a gente, ou quase toda, como se não quisesse a coisa, responde ao lado. Até quando? Perceberem que são já olhados de fora – e isso devem perceber, quanto mais não seja pelos resultados das eleições europeias – pelos vistos não basta para mudarem. Marcelo Rebelo de Sousa, às tantas, às vezes percebe-o. Mas esse limita-se a rir compulsivamente. Na televisão, onde vai ficar, provavelmente para nosso bem, e para a qual foi feito.