Numa época onde recorrentemente a ficção nos anuncia o curso da realidade, tenho acompanhado os mais recentes acontecimentos no Afeganistão ao mesmo tempo que devoro na Netflix os diversos episódios da 8.ª temporada de “Homeland”. “Homeland” (batizada, em português, de “Segurança Nacional”, com 8.3/10 no IMDb) é uma saga criada pela Showtime, centrada na vida de uma operacional da CIA, Claire Danes, que desde 2011 nos vai contando de uma forma romanceada as diversas vicissitudes do mundo da espionagem. Com passagens pelos distintos teatros de guerra onde os EUA têm marcado presença, há russos e americanos, paquistaneses, Mossad e histórias complexas passadas entre os corredores de Washington DC e vários teatros de operações, na Síria, em Israel, no Iraque, em Moscovo, na Europa e, obviamente, no Afeganistão. Ora, é num Afeganistão à procura da paz entre americanos e talibãs que se desenrola a 8.ª temporada, com detalhes de tal forma deliciosos que nos perguntamos se quem escreveu a saga tem uma bola de cristal ou se, pelo contrário, na Casa Branca e no Pentágono não haverá gente a ver filmes a mais, inspirando nas séries o seu curso de ação. É que as complexidades, contradições, consequências óbvias e clichés da saída dos americanos do Afeganistão que estamos a assistir nos últimos dias estão lá, em “Homeland”, de uma forma tão bem romanceada, que ficamos com a sensação de que hoje podemos ficar mais informados e esclarecidos vendo séries de ficção, do que assistindo à ficção que vários órgãos de comunicação social e as redes sociais nos oferecem no acompanhamento de uma realidade que não se preocupam em conhecer.

Sei bem que ao arrancar um artigo de opinião com referências a séries do mainstream comercial norte-americano, em vez de Lars Von Trier, estou a prescindir voluntariamente das prerrogativas concedidas aos militantes do humanismo caviar, os quais se podem dar ao luxo, até, de enquadrar no pluralismo apologias estéticas do terrorismo islâmico. Foi, aliás, ternurento ler tanta gente com responsabilidades públicas e na comunicação social, civilizada e educadamente, a contestar, numa linguagem cuidada, ao bom estilo do “respeitinho é muito bonito”, um texto da advogada de Otelo, Carmo Afonso, que nos convida a um olhar parolo e romântico sobre os talibãs. Suporta-se em Robert Fisk, mas mais valia citar, também, Hans Christian Andersen: “o rei vai nu”, já que na mesma semana em que o jornal Público cedeu à censura para alimentar os caprichos das redes de indignação geral, os mesmos ogres que exigiram devorar Pedro Girão, apelaram ao “pluralismo” para que pudéssemos constatar que, para os que detêm o monopólio do “bom coração”, a humanidade, afinal, não tem valores fundamentais e a dignidade humana e individual dependem, enfim, não de valores universais, mas da adesão de cada comunidade em concreto, sendo renunciáveis. O pluralismo deve, a meu ver, acomodar todos os inimigos da liberdade, incluindo os que (nos seus textos) defendem o assassínio da universalidade dos direitos fundamentais. Constato, em qualquer caso, com pena, que um jornal com os pergaminhos do Expresso dá guarida a quem, com elevada pretensão e aspiração de intelectualidade, pratica terrorismo no uso do português, pondo a cada frase em causa a dignidade da nossa língua.

As reações de aversão aos talibãs que assistimos nos últimos dias, no seu simplismo e nos seus clichés, são muito o fruto do mimetismo imposto pelas redes sociais que convidam agressivamente à adesão da causa do momento. Sendo epifanias vãs, sem qualquer tipo de consequência ou sequência, elas são, em qualquer caso, expressão do enorme consenso existente em relação à universalidade dos direitos fundamentais e à importância que hoje damos à igualdade entre homens e mulheres, à recusa da violência e consequente valorização da paz. A rejeição dos talibãs e a repulsa em relação à tomada de poder por parte de fundamentalistas islâmicos num canto perdido do planeta é, por isso, uma expressão clara da recusa da violência e da valorização da universalidade de direitos fundamentais, que vale a pena não minimizar ou relativizar. Não deixa de ser sintomático, em qualquer caso, que os mesmos EUA que foram tão censurados aquando do lançamento da sua jihad em favor da democratização do mundo, iniciada após o 11 de Setembro, sejam hoje tão criticados por darem fim a uma guerra longa e dispendiosa antes de estarem consolidados e enraizados valores fundamentais na sociedade afegã.

A saída do Afeganistão não é um momento irrelevante no curso da História, sendo uma derradeira página que se vira e encerra o ciclo que se iniciou após o 11 de Setembro, afirmando definitivamente uma nova era nas relações internacionais. Depois de um conjunto de intervenções falhadas, que oneraram significativamente os cofres da América e, sobretudo, o seu prestígio e reputação no mundo, Biden dá sequência à doutrina Trump e sinaliza o que há muito já podíamos assistir nas séries de ficção: os EUA não vão permanecer indefinidamente num território onde a maioria das questões que engajam no seu interesse nacional estão cumpridas, em concreto, desmantelar a Al-Qaeda e outras redes terroristas internacionais, e capturar Osama Bin Laden.

Desde 2002, altura em que comecei a estudar o tema com algum detalhe, que sou crítico da influência neoconservadora nas diversas administrações norte-americanas e do carácter messiânico que este grupo restrito de pensadores tentou incutir na política externa dos EUA. Organizados desde o final dos anos 50 em redor e a partir de diversos polos de reflexão e acção, think tanks e centros universitários, atingiram com Clinton e Bush o ponto máximo da sua influência junto dos centros de poder. Embora associados historicamente a uma direita mais radical, importa recordar que uma boa parte deste grupo transitou da extrema-esquerda do espectro político, nunca abandonando os seus métodos e hardware originais. Irving Kristol, considerado o Pai desta corrente, tinha por exemplo raízes trotskistas, que se manifestaram no seu zelo ideológico, na sua capacidade de organização e polémica e na sua visão internacionalista, que marcaram a sua atuação até ao final dos seus dias. A forma como os neoconservadores procuraram diluir no interesse americano a sua agenda maniqueísta, que perceciona o mundo como uma luta permanente entre as forças do Bem e do Mal, entre a Luz e as Trevas (que deu lugar, aliás, à definição de um Eixo do Mal, após o 11 de Setembro, ou à divisão que Bush efetuou na comunidade internacional com a famosa “with us or against us“), numa lógica de guerra permanente, fortemente influenciada numa vanguarda de superioridade moral, é definitivamente derrotada (pelo menos no ciclo que agora se encerra), com o abandono militar do Afeganistão.

Desenganem-se, porém, os que veem nesta retirada um reforço do isolacionismo norte-americano. Ao longo da História todas as grandes potências tiveram, em permanência, tentações hegemónicas. E os EUA não vão deixar de procurar condicionar todos os centros de poder que sejam nevrálgicos para seus interesses. Nos últimos anos, e com a revolução digital, o eixo mudou, porém, para outros espaços de atuação. A guerra passou a usar, primeiro, muito mais veículos não tripulados e menos soluções tradicionais e o exercício do poder faz-se, cada vez mais, na limitação de acesso a contas bancárias e aos benefícios do mundo civilizado, no combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, no controlo da informação e nas plataformas de comunicação. Os que hoje regozijam com a capitulação militar dos EUA, ignoram que o novo teatro de operações se faz num ambiente onde a supremacia norte-americana é evidente, num mundo digital onde os EUA ditam, desde o início, as regras do jogo. Basta ter presente que, no sábado passado, enquanto os talibãs se divertiam a tomar posições em Cabul, e por cá assistíamos ao abandono atabalhoado das tropas americanas do terreno, o The Washington Post reportava-nos que cinco websites dos talibãs, essenciais até à data na propaganda do grupo terrorista, dentro e fora do Afeganistão, haviam ficado na véspera, repentinamente, offline, o mesmo tendo ocorrido, segundo o SITE Intelligence Group (que monitora a atividade extremista online), a numerosos grupos de WhatsApp utilizados pelos insurgentes. Não estando ainda claro quem suportou tal ação, fica no ar a ideia de que tal terá resultado de uma iniciativa (por ação ou omissão) da empresa californiana CloudFlare, que assegurava a proteção dos mesmos, e da própria Facebook, que detém a plataforma WhatsApp. A este título, vale a pena recordar a entrevista exclusiva que Alejandro Mayorkas, líder do Departamento de Segurança Interna dos EUA, deu ao Observador, no passado dia 21 de Junho de 2021, quando se deslocou a Lisboa para pressionar o nosso Governo e reunir com Eduardo Cabrita, na sequência da decisão da CNPD de ordenar a suspensão do serviço da Cloudfare ao Instituto Nacional de Estatística, para suporte do Censos 2021, onde temas como partilha de dados em função dos interesses dos Estados, atividade dos portos, emigração, cibersegurança e ciberterrorismo, foram colocados no topo da agenda numa nova narrativa que, simbolicamente, ganha definitivamente o palco do protagonismo, abrindo um livro que já está a ser escrito há alguns anos, mas que só agora substitui o guião usado no pós-11 de Setembro, que foi difícil de enterrar.

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