De novo a Igreja faz centrar as atenções na instituição laical Opus Dei ao proclamar beata, dia 18 de Maio, uma das primeiras numerárias, a espanhola Guadalupe Ortiz de Landázuri. Com o reconhecimento das virtudes heroicas de Guadalupe a sua vida será difundida como um exemplo a seguir. Reacende-se, assim, o interesse (ou a polémica) sobre a especificidade desta instituição. Na primeira biografia publicada sobre Guadalupe Ortiz (2001) (1) é-lhe atribuído o perfil de pioneira na expansão do Opus Dei e o de filha predileta do fundador, o sacerdote Josemaría Escrivá. Pela estreita colaboração que tiveram é considerada o seu braço direito na expansão do movimento em Espanha (1944-1950; 1960-1975) e, sobretudo, no México (1950-1956). E porque ambos faleceram no mesmo ano, com apenas vinte dias de diferença, Guadalupe será beatificada em Madrid, também em Maio, em data muito próxima da beatificação do fundador, a 17 de Maio de 1992. Filha de pai militar, muito da sua forte personalidade desenvolveu-a no seio de uma família católica, na exigência das virtudes castrenses e, também, na adaptação às constantes mudanças de casa e de país sempre que o pai era destacado em serviço. De igual modo, a Guerra Civil de Espanha, o fuzilamento do pai e as repercussões da Segunda Guerra Mundial, na escassez de bens essenciais, provaram e marcaram o seu carácter. Esta base educativa e de provação tornou-a apta para compreender o alcance do que lhe foi proposto pelo sacerdote Josemaría Escrivá, ao ser admitida no então incipiente movimento laical Opus Dei, em 1944.

Guadalupe Ortiz de Landázuri teve uma vida fora do comum. Fez parte do núcleo de mulheres pioneiras, numerárias, formadas directamente pelo fundador do Opus Dei, que lhes disponibilizou uma sólida formação humana, doutrinal e teológica tal como o fez com a secção masculina. Os pilares da formação, assentes na ampla Tradição paulina e Patrística (2), consistiam na compreensão, de certo modo visionária, escatológica poderíamos dizer, de que o sacramento do Baptismo insere cada cristão no dinamismo da nova criação pela filiação divina (filhos no Filho). O acontecimento nuclear desta transformação cósmica viu-o claramente o fundador no dia 7 de Agosto de 1931, Festa litúrgica da Transfiguração do Senhor: «E Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim» (Jo 12, 32). O efeito cósmico da Redenção adquire forma através do chamamento universal à santidade: «Até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus» (Rm 8, 19). É neste contexto que o sacerdote Josemaría Escrivá propõe ao núcleo dos pioneiros, homens e mulheres, a plena identificação com Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem. Em muitas das suas homilias era recorrente ouvi-lo afirmar: «Temos de ser, cada um de nós, alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.» (3)

Sendo Guadalupe formada em Química foi-lhe particularmente fácil entender as repercussões que a coerência da vida cristã teria na transfiguração da matéria, potenciada pela Redenção de Jesus Cristo. A sua formação académica e o trabalho profissional permitiram-lhe, assim, contextualizar-se nesta vocação à santidade e corresponder aos desafios propostos pelo fundador do Opus Dei. Os primeiros vinte anos deste movimento laical (de 1928 a 1950-52) consistiram numa intensa tarefa formativa dirigida, prioritariamente, a jovens universitários de ambos os sexos e em vida de celibato. Escrivá preparou-os para dirigirem Centros de formação sendo eles próprios, como directores espirituais, encarregados da formação contínua das novas vocações de leigos. Soube incutir nos pioneiros a plena vivência do sacerdócio comum laical, pela consagração baptismal, unido ao sacerdócio ministerial. Assim o afirmou, a sacerdotes e leigos, numa das suas belas homilias: «O cristão sabe que está enxertado em Cristo pelo Baptismo; habilitado a lutar por Cristo pela Confirmação; chamado a actuar no mundo pela participação que tem na função real, profética e sacerdotal de Cristo; feito uma só coisa com Cristo pela Eucaristia, Sacramento de unidade e de amor. Por isso, tal como Cristo, há-de viver voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada um dos que o rodeiam, para a Humanidade inteira.» (4) Guadalupe entendeu este espírito e viveu-o na perfeição. Por isso, aceitou desempenhar sucessivos encargos apostólicos na direção de Centros universitários, em Espanha e no México, disponibilizando sólida formação às residentes universitárias; gerindo a administração desses Centros e disponibilizando-se como diretora espiritual de universitárias (numerárias), de camponesas (numerárias auxiliares) e, a partir de 1950, também de mulheres casadas (supranumerárias e cooperadoras). Tudo isto como parte integrante dos apostolados específicos do Opus Dei que o fundador lhe atribuiu.

Podemos perceber, então, o alcance da beatificação de Guadalupe Ortiz de Landázuri numa época em que se debate na Igreja a recuperação do diaconado feminino. Fixando o olhar, com redobrada atenção, nos inícios do então movimento laical Opus Dei vê-se, com claridade, que se trata de um diaconado permanente, de homens e de mulheres, pela consagração baptismal. Centrado nos primeiros séculos do Cristianismo, Escrivá fez por recuperar, na Igreja, um ministério que é essencialmente laical e que – segundo alguns historiadores – existiu nas comunidades cristãs dos primeiros séculos, com maior relevo no Oriente cristão. Nas recentes afirmações do Papa Francisco a um dos jornalistas no voo de regresso da Macedónia-Roma, a questão do diaconado feminino não está ainda esclarecida porque entre os investigadores os pareceres divergem. O núcleo da questão consiste em esclarecer se o diaconado feminino permanente era considerado uma ordenação sacramental. Se o era, então a mulher diácono passava a ser também clérigo, dependendo directamente do Bispo que a ordenara. Dar-se-ia, então, uma mudança ontológica que marcaria a distinção entre a pessoa ordenada e a não-ordenada. Esta é a conclusão do estudo, por exemplo, da teóloga Phylis Zagano, que integrou a Comissão nomeada pelo Papa Francisco e convidada pela UCL para uma conferência sobre o tema, em parceria com o Pe. Bernad Pottier, também ele membro da referida Comissão. (5)

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Desde os inícios que o fundador do Opus Dei teve um discernimento claro sobre o diaconado permanente de homens e mulheres, por comunicação infusa de Deus, a 28 de Outubro de 1928. Sabia que o Baptismo é a consagração por excelência para todos os cristãos e que é neste sacramento que se dá a mudança ontológica, em todos: leigos, sacerdotes, bispos, religiosos, consagrados. Tal como o Papa Francisco afirmou numa Carta dirigida ao cardeal Marc Ouellet, a 19 de Março de 2016, denunciando o clericalismo na Igreja: «(…) todos fazemos o nosso ingresso na Igreja como leigos. O primeiro sacramento, que sela para sempre a nossa identidade, e do qual deveríamos ser sempre orgulhosos, é o Batismo. Através dele e com a unção do Espírito Santo, (os fiéis) “são consagrados para serem edifício espiritual e sacerdócio santo” (Lumen gentium, 10). A nossa primeira e fundamental consagração afunda as suas raízes no nosso Batismo. Ninguém foi batizado sacerdote nem bispo. Batizaram-nos leigos e é o sinal indelével que jamais poderá ser cancelado. Faz-nos bem recordar que a Igreja não é uma elite de sacerdotes, consagrados, bispos, mas que todos formamos o Santo Povo fiel de Deus.» (6) Por inspiração divina, foi esta a linha de orientação que esteve na base da fundação do Opus Dei. Por isso, o sacerdote Josemaria Escrivá não aceitou com agrado o reconhecimento jurídico do Opus Dei, em 1947-50, pelo Papa Pio XII, como instituto secular e dependente da Congregação para os Religiosos. Rejeitou a conotação com os religiosos bem como a necessidade de que os membros em vida de celibato tivessem que professar votos. A pista, para se entender o que de facto pretendia Escrivá, encontra-se no estudo teológico-jurídico que realizou sobre a Abadessa de las Huelgas, publicado em 1944 e reeditado em 1975: «É uma investigação penetrante sobre o caso extraordinário de jurisdição quase-episcopal, respeitante à Abadessa do famoso Mosteiro de las Huelgas perto de Burgos (Espanha), realizado a partir de fontes e documentos originais.» (7) Este caso extraordinário da Abadessa é referido também no estudo realizado pela teóloga Phylis Zagano sobre a mulher diácono. (8)

Foi o Papa João Paulo II que, em 1982, decidiu erigir o Opus Dei em Prelatura pessoal, internacional, reconhecendo-o como instituição essencialmente laical. Com esta nova configuração jurídica os membros passaram a estar dependentes da Congregação para os Bispos. Sendo o Opus Dei uma instituição laical por que motivo não ficou dependente do Pontifício Conselho para os Leigos, instituído pelo Papa Paulo VI, a 10 de Dezembro de 1976, através do Motu próprio Apostolatus peragendi? A resposta é simples: porque o diaconado permanente depende directamente dos bispos, seja no Oriente como no Ocidente. É esta a “vocação específica” exigida para se ser admitido no Opus Dei. É por isto que os sacerdotes incardinados na Prelatura, vindos das fileiras dos numerários e agregados a convite do Prelado, não o são por vocação, mas por encargo apostólico. Ou seja, ser sacerdote no Opus Dei é um encargo apostólico porque Josemaria Escrivá entendeu que não se dá mudança ontológica face aos não-ordenados. Para o fundador e para João Paulo II este diaconado permanente, de homens e mulheres, tem a missão de estabelecer pontes entre a hierarquia da Igreja e o Povo de Deus ao estarem aptos para disponibilizar uma sólida formação humana, doutrinal e teológica em todas as dioceses e respectivas paróquias do mundo.

Um segredo bem guardado, que Deus está a tornar patente através da canonização de São Josemaria Escrivá, da beatificação do seu primeiro sucessor D. Alvaro del Portillo e, agora, a beatificação da numerária Guadalupe Ortiz de Landázuri. Porém, face às vicissitudes históricas que sempre corrompem os carismas fundacionais, São Josemaria deixou um alerta aos membros da instituição: «Porque todos somos homens e todos filhos de Deus, não podemos conceber a nossa vida como a trabalhosa preparação de um brilhante curriculum, de uma admirável carreira. Todos nos havemos de sentir solidários e, na ordem da graça, estamos unidos pelos laços sobrenaturais da Comunhão dos Santos.» (9) Opõe-se aqui à mentalidade gnóstica e pelagiana e ao risco de que isto viesse a acontecer no Opus Dei.

Por certo, continuando a sua missão no Céu, Guadalupe Ortiz ajudará a reconstruir o que está danificado na instituição, à semelhança do que realizou no México com as antigas fazendas de assucar, La Gavia, Tenango e Montefalco.10 Ergueu-as das ruínas com a mesma convicção do profeta Isaías: «Serás como um jardim bem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis. Reconstruirás ruínas antigas, levantarás sobre antigas fundações. Serás chamado: “Reparador de brechas, restaurador de casas em ruínas.”» (10) O génio feminino sempre se destacou e atuou nas épocas de grande crise da Igreja… e parece continuar a ser esta a lógica de Deus para a crise actual.

(1) Cfr. EGUÍBAR GALARZA, M., Guadalupe Ortiz de Landázuri – Trabajo, amistad y buen humor. Ediciones Palabra, Madrid, segunda edición, 2001.
(2) Cfr. ESCRIVÁ, J., Amigos de Deus, homilias, DIEL Editora, Lisboa 2010, 4a Edição; Cristo que Passa, homilias, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 1983, 3a Edição.
(3) ESCRIVÁ, J., Cristo que Passa, homilias, nn. 11, 96, 105, 106, 183; Forja, n. 74. (4) ESCRIVÁ, J., Cristo que Passa, n. 106
(5) Cfr. Conferência na UCL, Mulher diácono: Passado, Presente, Futuro, com Phyllis Zagano e Pe. Bernard Pottier, 10 de Abril 2019; Macy, G., T. Ditewing, W., Zagano, P., Mulheres Diáconos – Passado, Presente, Futuro. Paulinas Editora, Prior Velho, 2019.
(6) http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2016/documents/papa-francesco_20160319_pont-comm-america- latina.html
(7) Le Tourneau, D., O Opus Dei, Editora Rei dos Livros, 1985, 2a edição, p. 108.
(8) Macy, G., T. Ditewing, W., Zagano, P., op. cit., Paulinas Editora, Prior Velho, 2019, p. 134.
(9) Escrivá, J., Amigos de Deus, homilias, op. cit., n. 76.
(10) Cfr. EGUÍBAR GALARZA, M., op. cit., capítulo XIII, pp. 173-187.
(11) Is 57, 11-12.